Arquivo

Preconceito na revista Piauí

Redação Lado A 21 de Maio, 2007 15h58m

COMPARTILHAR


Para quem não conhece a Piauí, ela é uma revista de cultura, que apresenta em suas páginas diversos contos, resenhas, críticas, reportagens e textos argumentativos e opinativos destacando a produção nacional. É uma grande revista, de formato tablóide, em papel reciclado, na qual nomes de peso escrevem e quase sempre traz um vencedor do prêmio Nobel ou Pulitzer para os leitores. É uma revista rara, que atinge a elite cultural ou pessoas que almejam fazer parte dela. Eu mesmo a compro desde a segunda edição, embora, antes, ela não fosse tão homogênea quanto é hoje.


Seria mais uma revista fadada à desgraça, mesmo com toda a sua qualidade. É que dificilmente uma revista como a Piauí atrairia tantos anunciantes, tantos leitores para a primeira compra com tão pouco investimento em mídia, se não fossem os dois nomes que lançaram o projeto: João Moreira Salles e Luiz Schwarcz. Leia-se cineasta e herdeiro do Banco Unibanco e o dono da Companhia das Letras. A revista ainda é comercializada pela Editora Abril.


Na oitava edição da Piauí, uma revista cheia de nacionalismo saudável e literatura, aparece na seção “Tipos Brasileiros” o texto “Os sungas-pretas” do jornalista Marcos Caetano. Marcos trabalha para o canal de esportes ESPN como comentarista, é colunista do jornal O Estado de São Paulo e ainda escreve para o sítio (na revista Piauí a palavra site inexiste) NoMínimo, editado pelo mesmo grupo. Acontece que “Os sungas-pretas” é um texto que vai muito abaixo do que se pode considerar respeitável para o ano de 2007.


Marcos Caetano narra o grupinho do qual faz parte, os sungas pretas, que freqüentam a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, e que tiveram até o presidente general Figueiredo como membro. Um grupo informal de senhores barrigudos de pança dura que freqüenta aquelas bandas durante os dias de semana. Um texto até interessante para se ler no banheiro, até que um trocadilho maldoso abre a torrente de preconceitos: “(…) sunga branca é coisa dos boiolas da Farmo de Amoaids.” Sim, o infeliz trocadilho diz exatamente isso, no final do segundo parágrafo. A Farme de Amoedo, como é sabido, é o point de homossexuais do Rio de Janeiro. Aids e gays frequentemente aparecem juntos, principalmente nos discursos de homofóbicos. É uma lembrança triste de quando gays morriam de aids e heterossexuais de pneumonia, câncer entre outras doenças escolhidas pelas famílias.
 
Mas para o desespero dos desavisados, o autor continua e ao narrar uma das atividades dos senhores de tangas negras complementa a ofensa. “Uma rede de sungas-pretas em frente à Galeria Alaska aceita a participação de pederastas nos jogos de vovôlei. Mas estes, ainda que tenham boa impulsão e sejam sempre dispostos, gritam em demasia e, o que é pior, com aquelas vozinhas esquiçadas que dão vontade de arrebentar-lhes as fuças. Na minha rede, continuamos fiéis aos princípios mais arraigados aos sungas-pretas. Alguém consegue imaginar o general Figueiredo jogando com bichas-loucas? Acho que nem mesmo a prática do abominável frescobol – que a cada dia vem sendo mais e mais praticado por homens que eu julgava machos – seria tão questionável quanto essa mescla indecente de gerações e opções sexuais.” Sim, o autor ainda faz apologia à violência.


Tudo bem, é licença poética, diriam os mais apaziguadores. Mas continua: “Passei a vida ressaltando os horrores da miscigenação, algo que, sabidamente, é responsável por quase todas as mazelas pátrias, inclusive o apagão aéreo (não é um acaso que o atual comandante da Aeronáutica seja um nissei).” Espera aí!!! Tudo bem que o jornalista assuma seu preconceito passado. É até nobre da parte dele. Agora, discriminar o japonês (parece perseguição, já que sou mestiço) e dar à miscigenação o status de algoz nacional já é demais, “sabidamente”, ainda afirmou ele. Passamos então, mentecaptamente, da homofobia, do racismo para o machismo. O autor ainda se refere a uma mulher que aparece no texto como “estupenda égua castanha” e “fogosa potranca”. Talvez ele não saiba, mas tratamento equino a seres humanos não é bem visto por pessoas com o mínimo grau de cultura, principalmente para uma revista que é lida por mulheres e homossexuais, já que, querendo ou não, estes se interessam muito mais por cultura. Só faltou discriminar judeus para ser considerado neonazista. Mas essa, certamente, os editores se ofenderiam.


Quando li o texto, percebi o mesmo em nada me acrescentou. Fiquei sabendo ali da existência de um grupinho de vovôs cheios de preconceitos, parados no tempo, que recusam mudar seus paradigmas mas que tomam Viagra sem o menor preconceito à modernidade. Depois, estava imaginando se quem leu tais palavras absorveu tanto preconceito, se é um patrulhamento excessivo de minha parte ou se a literatura deve ter a excusa de arte. Pensei até em processar o dono da mais importante editora de livros do país e o filho do dono do banco onde meus pais são correntistas há anos por publicarem e venderem algo desta estirpe. Mas simplesmente escrevi este texto e joguei a minha Piauí ao canto. Ela não me merece mais.


 

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

COMPARTILHAR


COMENTÁRIOS