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Corações Urbanos

Redação Lado A 17 de Dezembro, 2007 18h30m

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A insistência de Paulo era infinita, não que tivesse medo, mas era inseguro. Também não sofria insegurança por si, mas pelo nosso pequeno filho. Pequeno é modo de dizer, o garoto já ultrapassava os dezoito anos.
 
O computador ficava lacrado na sala, ele o vigiava depois das dez da noite e não podia ser tocado pelo pequeno Lucas. Nem mesmo quando eu insistia em utilizá-lo depois do toque de recolher me era permitido.


Eu insistia, precisa terminar algum projeto, poxa, precisava dele pra minha iniciante carreira de engenheiro. Mas sempre ouvia a mesma fala.


– Amor, você vai dar mal exemplo.


Lucas veio do primeiro casamento dele. Ainda em outras eras, outras preferências. Eu aceitei sempre muito bem, mesmo porque o tinha como um filho. Todo sábado, Paulo insistia em permanecer acordado esperando seu bebezinho voltar da balada. Perdi as contas de quantas vezes fui acordado por luzes acesas repentinamente e vozes se alterando. Eu tentava ajudar o garoto.


– O deixe em paz Paulo! – Minha voz saia enrouquecida do sono.


Minhas suplicas nunca surtiram qualquer efeito, foram em vão. Mas eu o admirava em ter tido a coragem de pedir o filho para si. Em um processo de divórcio muitíssimo conturbado. Claro que o desleixo de sua ex-esposa o favoreceu e muito. Ela já havia sido autuada uma vez pelo conselho tutelar, em uma denuncia dos próprios vizinhos. Mas o preconceito do juiz quase venceu a causa. Paulo já morava comigo e isso foi exposto pela advogada dela.


Mas as implicâncias de meu companheiro foram se intensificando e com visitas regulares de algumas ficantes de meu filho postiço, Paulo se alterou. Lembro-me daquele domingo em que ele decidiu trazer uma delas para almoçar conosco. Era uma moça linda e muito simpática. Mas uma pessoa não se agradou nem um pouco e em plena mesa queria exigir explicações. Paulo falou austero e direcionado exclusivamente ao filho.


– O almoço está bom? – Ele disse cada palavra com um tom ácido e irônico.


– Tanto faz – Lucas respondeu provocativo.


A menina quis intervir, mas só piorou a situação.


– Está maravilhosa a comida, tenho certeza que o Lucas também adorou – e voltando-se para o garoto – Não é amor?


– Amor?? Disse Paulo


– Não começa pai, por favor.


– Há quantas horas se conhecem?


Eu fui buscar a sobremesa, para acalmar os ânimos, minha alma ria da situação. Lucas se sentia preso pelo pai super protetor, era visível esse sentimento em seus olhos. Mas eles ainda insistiram em concluir a conversa. Meu companheiro voltou a se expressar.


– E a Julia, que veio aqui ontem à tarde, também te chama de amor?


– Pai !!!


– Quem é Julia? Você não tinha que estudar ontem? – Ela foi incisiva em suas palavras, fiquei até assustado com a postura da menina de quinze anos, e segurei-me para não rir da situação.


Os dois pequenos se acertaram e ainda saíram para passear naquele dia. Eu fiquei em casa acalmando Paulo que se irritava com a minha paciência. Eu só tentava expor a situação, eram de outra geração, outros valores, nada mais. Ele apenas me respondia irritado.


– É, eu sou inseguro, sim. É meu filho, poxa!

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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