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Sob a aura da ilusão

Redação Lado A 16 de Maio, 2008 05h18m

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Seus olhos miravam, incrédulos, as chamas se espalhando pela casa de madeira do outro lado da rua. Suas pernas, impulsivamente, pulavam. Seu choro assumia quase um tom histérico. Ela não conseguia compreender como tudo havia caminhado para convergir no grotesco espetáculo que presenciava. Viu o filho pequenino nos braços de Joana e resgatando forças de sua alma, acalmou-se e sorriu. Vislumbrou então sua promessa cumprida. Tornaram-se uma família.

Desde que haviam terminado o colegial, alguns anos antes, nunca mais deixaram de se ver com freqüência. Sempre em longos passeios pelas escassas praças da pequena Laranjais. Eram apenas boas amigas. Durante as férias do trabalho de Mariana, ela convidou Joana para um mergulho nas águas cristalinas do riacho da fazenda de seu avô. Foi quando aconteceu o primeiro beijo. As duas se entregaram aos impulsos de uma paixão arrebatadora, rodeadas pela natureza selvagem.

Mariana precisava se desdobrar em explicações para seu marido. Carlos foi o grande amigo de colégio que, apenas por pena, ela havia se apaixonado. Ele entendia a amizade delas como se um laço familiar as unisse. Mas ao mesmo tempo esse esposo, muito inseguro, desconfiava dos passeios delas e de possíveis traições de sua mulher com os amigos de Joana. Nutria um amor possessivo.

Um dia, durante uma tarde muito ensolarada, Joana decidiu encontrar sua amada. Já havia planejado minuciosamente o encontro com muita antecedência. Lutou até conseguir uma folga. Despertou, no tão esperado dia, logo aos primeiros raios de sol. Quando chegou ao portão da casa de Mariana percebeu um olhar doce e surpreso que a espreitava por uma pequena fresta na cortina, sua amada apenas deslizava a ponta dos dedos suavemente pelo corte do tecido. Quando a porta se abriu, Joana ainda estava a dois passos de chegar. Com um sorriso estonteante estampado no rosto, e com os braços tremendamente receptivos, Mariana escancarou a porta e, abraçando-a com forte carinho, sussurrou-lhe baixinho.

– Quantas saudades.
– Meu coração já doía por não te ter por perto.

Ainda sem entrar e com os braços entrelaçados, elas decidiram responder aos impulsos de seus desejos e se beijaram intensamente.

A irmã de Mariana observou pela janela a cena pouco discreta das duas. Ela morava logo em frente. Preocupada, correu ao encontro do marido. Chamou por ele nos fundos da casa. Então um homem encorpado, com porte militar, apareceu na porta e questionava com autoritarismo na voz o porquê estava sendo incomodado. A esposa, com voz nervosa, típica dos curiosos, explicou o que tinha acabado de ver do outro lado da rua. Ele pegou o telefone, discou, esperou pacientemente ser atendido e, ao ouvir a voz do amigo, abriu um leve sorriso.

– Carlos?
– Opa.
– Desculpa incomodá-lo no trabalho, mas precisava lhe contar algo do seu interesse.

Elas se entregavam ao ritmo daquela valsa de corpos, estavam totalmente inebriadas pela manhã aconchegante e pelos lençóis que acompanhavam o transpirar de seus corpos.

A porta da sala se abriu de repente. Do quarto, elas nem perceberam que não estavam mais sozinhas. Carlos passou pela cozinha agarrou uma faca e entrou no quarto abruptamente. Lençóis se rasgaram e sangue foi vertido sobre a fronha azul, tornando sonhos em pesadelos. Ao fim da tarde Joana estava sozinha no hospital. Algumas das facadas haviam sido mais profundas e requeriam cuidados mais intensos. Mariana estava em casa, com alguns ferimentos no braço, buscando forças para encontrar uma saída. Carlos estava calado e resignado ao quarto dos fundos. Mariana não resistiu e aproveitando a desatenção do marido correu para ver sua amada. Ela lhe fez uma promessa naquela tarde.

Elas não se viram mais e Joana se mudou para Londrina em busca de uma vida melhor. Mariana viveu na indiferença com Carlos. Engravidou e cuidou daquela gestação como um pequeno tesouro. Quando chegou a grande hora, ela foi para o hospital suportando as dores do parto, tendo sua promessa fixa em mente. Alguns meses depois do nascimento de seu filho, ela recebeu uma visita muito aguardada. Joana apareceu em seu portão, pulou do carro novo e foi de encontro mais uma vez aos braços de sua amada.

– Vim cobrar a promessa.
– E eu pretendo cumprir.

Em seu escritório, Carlos ouviu o telefone tocar. Ao chegar a casa e ver sua esposa arrumando as malas, enlouqueceu. Pegou um facão na despensa e começou a ameaçá-la. Mariana pediu que Joana fosse para casa da irmã com seu filho. Ela foi, mas quase não conseguiu entrar pela resistência do casal. Mariana apenas chorava. Carlos não teve coragem de descarregar seu ódio sobre ela e sentou no chão. Ela foi lentamente desnorteada carregando sua mala e saindo pela casa, atravessou a rua. Quando chegou à porta da casa de sua irmã olhou para trás e viu as primeiras chamas que começavam a destruir sua casa.

Redação Lado A

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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