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Livre para odiar

Redação Lado A 10 de Julho, 2008 11h16m

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O pequeno celular, deixado sobre a cômoda no quarto, tocou insistentemente. Ele levantou os olhos e apenas observou o movimento vibratório do aparelho. Pensou em não atender, estava cansado, mas decidiu ver quem estava ligando. O nome Lucas brilhava na pequena tela. Decidiu atender seu amor.

A voz de seu companheiro pelo telefone era de uma calma incomum. Ele sentiu o ar rarefeito da conversa, sem muito nexo, que se desenrolava com Lucas. Ouviu promessas de que teriam um dia cheio de alegrias, com passeios românticos e cheios de carinho. Ele nunca tinha ouvido tantas promessas desse tipo de seu frio Lucas. Tinha certeza de que algo errado estava acontecendo.

Como um descrente procurou razões lógicas para firmar sua opinião contrária aos misticismos de um dogma infundado. Ele decidiu testar a veracidade daquelas promessas. “Por quê?”, disse rispidamente a Lucas. O susto foi imediato, seu companheiro emudeceu. O silêncio arrebatador fez com que ele relembrasse os últimos acontecimentos. A compra de um celular, fruto de um bônus, fez suas desconfianças sobre o comportamento infiel de Lucas aumentarem, os olhares trocados com o vendedor que mal conseguia disfarçar seu interesse no garoto, eram um sinal claro das evidências. Outras fugas a loja, com o pretexto de que necessitava de ajuda para configurar o aparelho, foram apenas confirmações e estopins para as crises. O último fôlego daquele relacionamento chegava ao fim.

Ele insistiu e quebrou a barreira, de total ausência de fala, que os envolvia naquele momento. Lucas apenas disse que precisava conversar. Seu tom de voz era ácido. As palavras saiam entrecortadas. “Mentira”, mais uma vez ele insistiu em buscar a verdade por trás de uma simples ligação. Começou a imaginar motivos. Seu companheiro não estava procurando alento ou desabafo, eles mal conversavam naquelas últimas semanas. Começou a entender. Ficava cada vez mais claro. Em cada nova palavra dita naquela chamada, todas mal admitidas por Lucas, às letras quebravam-se por falta de fundamento. Sua voz tomou um ar sério e revolto, como em uma guinada de sentimentos, comum aos afoitos, a ataques súbitos de bipolaridade, ele levantou a voz e exigiu explicações. “Você quer terminar?”, a pergunta saiu rápida, cortante. Lucas, retomando a frieza das primeiras falas daquela conversa, afirmou que estava se sentindo sufocado. “Seu amor me mata”, afirmou convicto.

Foi tudo tão inesperado, tão forte, se Lucas pudesse ter visto seu semblante ao receber aquelas palavras. Talvez tivesse se jubilado. Talvez se arrependesse. Sentimentos contrários podem ser amantes e nesse caso, Lucas, teria chegado ao nirvana em êxtase.
Agora, o silêncio vinha do sentido contrário. Ao ouvir, brutalmente, aquelas palavras de seu companheiro, emudeceu por completo. Como, ou quando, essa mudança havia acontecido – de um romance sutil a uma vida a dois regrada com muitas feridas – Não somente o olhar sensual do vendedor de celulares, mas mesmo palavras duras ditas sem pudor ou respeito. O encanto havia se quebrado.

Voltando ao diálogo e respondendo às insistentes súplicas de Lucas para que lhe dissesse algo, ele perguntou novamente o “por quê?”. Do outro lado da linha só ouviu alguns sussurros de covardia. Mesmo que obtivesse uma resposta clara, nada mais importaria. O sentimento acabara naquele momento. Não o amor, mas o respeito a sua singularidade subjetiva. Dentre as explicações de seu companheiro ouviu-o dizer que não queria terminar daquela forma, por telefone, mas a vida havia os levado aquele triste fim.

“A vida?”, disse ele entre soluços. Sentiu seu coração pular. Queria poder estancar seus batimentos, mas também seria covardia. Ainda ouviu pedidos de desculpas incessantes, sem nexo, contrariando a inicial frieza e superioridade do tom de voz de seu amado. Amado. Não mais poderia lhe conceder esse codinome, o sentimento, seja lá qual era, acabara. Seus olhos, já vermelhos do choro, e sua face, inchada pela rejeição, deram vigor a um novo semblante, formado pela dor do momento. Sua voz começou a assumir um tom irônico e ele desdenhou de todos os momentos que viveram lado a lado. Desligou o aparelho e o arremessou contra a parede, impondo sua fúria. Era o fim de uma fase em sua vida. Sabia que se recuperaria daquele medo da solidão que o abatia naquele momento, mas tinha uma certeza, estava livre. Nem remorsos o abateriam. O ódio o tomou. A rejeição o guiou.

Redação Lado A

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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