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Jeremias Bentham (Terceira parte)

Redação Lado A 11 de Fevereiro, 2009 05h55m

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“Bentham ocupa-se, igualmente, da ficção da “pureza moral” empregada pelos espíritos impregnados de religião como critério de discriminação entre as práticas permitidas e as proibidas. Ele mostra como este critério “psicológico” funciona por analogia, sem que os locutores tenham-lhe uma consciência clara, com as palavras que designam um certo estado corporal: a sujeira, o enodoamento, a aversão, o desgosto são, antes de tudo, estados físicos e sensações cujos nomes são usados para exprimir sentimentos e proferir julgamentos que nada mais tem a ver com a experiência corporal, que atua como um fundamento desconhecido porém ativo de valoração normativa. É remontando dos termos psicológicos aos referenciais reais que Bentham pretende explicar porque se punem os sodomitas pelo fogo. Ele não postula, assim, apenas, a despenalização – o que, a dizer verdade, era, já, bastante, na época – ele, na verdade, muda de discurso quando questiona a heterossexualidade suposta como “natural” e “pura” ”.
 
À maneira de Helvétius, Bentham consulta a história e os relatos dos exploradores. Os testemunhos são bastante numerosos, especialmente nos autores antigos, para que a idéia de uma norma da vida sexual sempre idêntica seja credível. Para chegar a questionar isso radicalmente, Bentham maneja a sua arma principal, o princípio da utilidade. Não há “natureza” humana fora do que se pode observar no homem: uma constituição humana feita da procura dos prazeres e da fuga à dor.


O ponto crucial é, sem dúvida, a idéia de que a sexualidade é um “sexto sentido”, geralmente desconhecido como tal. […] Em que a repressão da sexualidade nas suas formas irregulares oferece um qualquer acréscimo de felicidade individual e coletiva?  Em que a distinção entre as formas irregulares e regulares de sexualidade tem sentido sob a luz da maximização da felicidade do maior número? No final das contas, a criminalização das irregularidades parece bem trazer mais mal do que bem, em uma sociedade. Os manuscritos do período de 1814-1817 insistirão ainda na inocência das práticas irregulares e mesmo sobre o seu caráter benéfico. As “irregularidades sexuais” não devem apenas ter a liberdade de exprimir-se e de satisfazer-se enquanto não prejudicam, elas devem entrar na grande lógica social da maximização dos prazeres.


A concepção segundo a qual as relações sexuais são fundadas no livre consentimento dos parceiros e que devem ser livres enquanto cada um acha-se interessado nelas, enfraquece a autoridade religiosa e todos os apoios que  toma esta em uma filosofia ascética.


[…] Mas é sobretudo contra a longa tradição repressiva do cristianismo que ele combate. Esta religião fabricou uma entidade sobrenatural à que é necessário sacrificar os prazeres mais preciosos, para esperar obter dela, no outro mundo, as recompensas merecidas e evitar as terríveis punições do inferno. Quanto mais os sacrifícios são pesados neste mundo, tanto maiores serão as possibilidades de retribuição no outro. Porém aqueles que desejam escapar ao sacrifício do seu prazer sexual devem ser, ele próprios, sacrificados e queimados vivos na fogueira, à maneira dos heréticos, das bruxas e dos mágicos.


Esta análise sublinha a ligação entre o ascetismo religioso e o ódio das “excentricidades” sexuais no Ocidente cristão. Todo ato de sexualidade que visa somente à um prazer sem fim procriador, acha-se em contradição com a economia religiosa do sacrifício. A tomada de posição de Bentham é clara: a sexualidade não deve mais ser determinada pela fecundidade, que pertence, apenas, ao domínio dos efeitos, porém pelo seu único objeto próprio: o prazer. E importa desembaraçarmo-nos da grande ficção prejudicial que é um tal Deus do sacrifício, pela educação, por uma estrita separação entre a igreja e o Estado e mesmo pela eutanásia desta máquina contra a felicidade que é a religião oficial. É preciso terminar com todos estes sofrimentos do espírito infundidos pelo “ópio da crença em outro mundo”.


O utilitarismo contesta o ascetismo cristão e propõe outra economia: os prazeres compram-se com as penas deste mundo e elas só valem pelos prazeres que se obtêm nesta vida. O asceta crê poder trocar os sacrifícios que se inflige em troca de recompensas celestes. A alegria na Terra é mesmo concebida como um obstáculo na via da beatitude eterna. Este cálculo é falso, porque repousa na troca entre os prazeres reais, bastante bem definidos, previsíveis, mensuráveis, e a esperança sem fundamento de uma eternidade feliz que escapa a toda prova de realidade, a toda verificação possível de possibilidades. Como se podem trocar as felicidades futuras inteiramente incertas por sofrimentos e privações terrestres de existência certa? Este mau cálculo que dura há bastante tempo é o efeito de um discurso que põe a eternidade como um dado absoluto a partir do qual a capacidade de cálculo foi inteiramente pervertida.


Os argumentos demográficos contra a condenação da homossexualidade integram-se nesta nova concepção radicalmente terrestre da moral. Em 1785, Bentham retoma a idéia segundo a qual, se a população das nações antigas diminuiu, não foi em razão de um suposto “crime contra o gênero humano”, porém por motivos econômicos. Aliás, lá onde a prática homossexual era mais espalhada, a população estava longe de ser insuficiente. Quando Bentham arrisca-se a cálculos relativos à energia sexual dos homens e das mulheres e à sua relação com a fecundidade, isto faz parte, ainda, de uma argumentação que visa à derrotar o adversário. […] A publicação do “Ensaio sobre o princípio da população”, de Malthus, em 1798, muda o eixo do seu arrazoado. Não se trata mais de afastar a responsabilidade da homossexualidade por uma suposta diminuição da população européia; trata-se, ao contrário, de mostrar que a prática da homossexualidade permitiria conter o crescimento da população.


São,estes, argumentos importantes, porém subordinados à causa da maximização da felicidade. A sexualidade tem por objetivo o prazer e cada um deve poder escolher o modo de satisfação que lhe convém. Mas esta extensão do grande discurso liberal às práticas sexuais inscreve-se em uma ordem normativa toda nova, governada pelo imperativo que maximiza a maior felicidade para o maior número. Desembaraçando da economia ascética fundada na esperança do gozo eterno no além, o utilitarismo faz-nos entrar em um mundo novo de todo, em que cada um é conduzido a obter a sua maior felicidade pelo cálculo cotidiano dos prazeres e das dores que pode extrair das suas relações com os seus semelhantes ao longo da sua vida.”

Redação Lado A

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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