Arquivo

Novos tempos, velhas manias

Redação Lado A 16 de Junho, 2009 20h14m

COMPARTILHAR


Apertava o controle entremeando canais de puro besteirol, pura futilidade, e parando minha atitude frenética, assisti um pouco de BBB. Nem lembro ao certo qual edição era, e nem lembro do que falavam. Só me concentrei nos corpos masculinos a mostra: bundas, músculos, volumes e nada mais. Eram como aqueles colírios do tipo lágrimas artificiais; imagens que refrescavam meus olhos sedentos. Imagens e mais imagens; já me cansava até da própria palavra imagem, necessitava do tato, das experiências sensoriais. Desliguei a tevê e descansei meus olhos, minha mente.


O susto ao acordar, aquele barulho irritante do meu celular, levantei com um salto – “Tá acordado?” – a voz sussurrante, de minha melhor amiga, despertou meus pensamentos; até então só meu corpo havia despertado. “Acabei de acordar” – Não esbocei um sorriso ao falar, é que meus lábios teimavam em fechar, mas em meu âmago havia uma grande alegria por ser salvo daquela monótona solidão. Antes mesmo de minhas últimas sílabas dispersarem-se ela prosseguiu, decidida: “Estou com uma amiga, vou passar pra te buscar! Vamos sair!”; o som de seu telefone, batendo o flip, finalizou a ligação.


Já estávamos no carro, próximos ao bar, mas o sono insistia e nesse jogo contra minha fisiologia eu perdia feio. Antes que o sono me engolisse tentei prestar atenção na conversa daqueles lábios femininos à minha frente e nas palavras de minha amiga, por pura autenticidade, tentando falar sem máscaras: “Adoro sair pras baladinhas gays no fim de semana”. A resposta foi automática: “Não gosto de gente que vai pra esse tipo de lugar”. Naquele momento, percebi que não se tratava de uma amiga. Pelo rumo da conversa, provavelmente, haviam se conhecido por algum bate-papo da internet. A coitada ainda tentou recuperar sua reputação de acordo com a hipocrisia daquela garota, disse não gostar dos lugares, usou a antiga desculpa da falta de opção, tentou de tudo.


O desejo é uma arma perigosíssima em mãos carentes, leva a autoflagelação. Minha amiga demonstrava sua carência e continuou a insistir, mesmo ignorada: “Eu também detesto esse povo freqüentador dessas boates, é um bando de gente fútil”. As palavras caiam no vazio daqueles surdos ouvidos ao seu lado. Eu me sentia mal por estar ali, culpado, sentindo um peso proveniente de minha incapacidade para ajudar. Finalmente chegamos; não era minha primeira vez naquele bar, não me agradava muito; em algumas ocasiões terminara a noite com alguém. Tudo tem seu lado menos sombrio. Saí rapidamente do carro, me doía assistir aquele massacre. Parei na frente do letreiro; uma placa simples sem muitos adornos e uma única imagem. Causava-me apreensão ver aquelas três mulheres desenhadas com fraques lembrando um trio de pingüins. Como Cecília Meireles teria descrito toda aquela simbologia publicitária?


O toque suave das mãos de minha grande amiga, alcançando meus ombros, me trazia de volta a realidade: “Vamos Fred, tá na hora de se jogar”. Sim, Fred, bem melhor que o extenso Frederico. Talvez apenas uma artimanha já que nomes como esses remetem aos tempos de nossos avós. Talvez seja no apelido que more o retrocesso, matando a autenticidade. O lugar estava abarrotado, mal podíamos caminhar. A música ao vivo salvava todo o ambiente, tocavam Ana Carolina, com uma interpretação forte, carregada de signos, mas era notório o desinteresse do público. A garota nova nem bem colocou os pés pra dentro e veio logo me indagando: “Onde fica o banheiro?”. Algo me dizia que não era a primeira vez dela naquele bar; fingi-me de desentendido e respondi rispidamente: “Pergunte pra garçonete”. Estava tão desatenta que nem me ouviu: “Ah, brigada! Vou lá rapidinho e já volto!”. Foi certinho ao banheiro e eu pude confirmar minhas desconfianças.


Dançamos por uns trinta minutos na parte mais calma, longe da pista e do palco, onde se concentravam os certinhos, o mesmo lugar no qual deveria estar a garota do banheiro que para nossa surpresa saiu de lá agarrada com uma mulher mais velha. Obviamente não pôde simplesmente calar-se e deixar-nos sem qualquer explicação moral pífia: “Gente essa é a Ana!” – entre um sorrisinho sarcástico – “Ela é discreta como eu, também odeia esse lugar!”. Não bastava a humilhação inicial à que fizera minha amiga passar, porque era preciso continuar naquele jogo insípido? Vendo minha amiga desbotar frente a tanta asneira, tive de me pronunciar: “E se conheceram aonde, no banheiro?”. Inventou terem se encontrado no balcão. Fiquei imaginando como seria esse balcão… do banheiro, claro. Para nossa grande sorte elas se foram e nossa noite pôde finalmente começar.


Meus olhos agiam por vontade própria; buscavam a beleza; e como tudo é plástico hoje em dia; dos músculos sobresalientes das barbies aos penteados modernos dos indies, meu olhar se encharcava de referências – uma profusão de corpos e estilos; exatamente como na tevê; mas apeteceu-me encontrar uma beleza natural, um corpo esguio e de tom suave, com uma barba encantadora. Quando o encontrei, parei, respirei, alcancei rapidamente os ombros de minha amiga: “Que lindo!”. Ela se virou, procurou, analisou, um a um, os poucos homens do lugar e não conseguiu identificar a quem me referia.
Discretamente apontei com a cabeça e sua reação foi instantânea: “Mas é uma pintosa!”. Apenas continuei encarando. Nem pude reparar, quando dei por mim, lá estava minha amiga conversando com o objeto de meu desejo, que se aproximara do bar – Olhava na minha direção; não sei o que ouvia dela. Quando voltou ao meu lado, eu não resisti à curiosidade: “O que conversaram?” “Nada, eu disse que você estava afim, ele não respondeu nada”. Coisas do desejo, sempre querendo o platônico; incendiei-me ainda mais; continuei encarando e fiquei surpreso ao vê-lo conversar com o rapaz ao seu lado e ambos olharem na minha direção. Beijaram-se, entre caricias, apertos mais fortes, volúpias e muito além do que podiam me mostrar; um ataque culminante aos meus sentidos, eu havia entendido o recado. Ainda tentei demonstrar minha libido por ambos – foi em vão.


Aproveitei minha grande amiga; passamos o restante da noite conversando, jogando piadas ao ar, rindo de nós mesmos. No carro ainda discutimos uma última dúvida: “Onde foram parar os putos?”; ao que minha amiga sorriu calorosamente: “Na internet, meu caro, cheios de máscaras!”.

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

COMPARTILHAR


COMENTÁRIOS