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Mero acessório

Redação Lado A 17 de Agosto, 2009 22h18m

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Um ano da França no Brasil, o que esperar dessa fusão? Só lembro de ter aceitado o convite de minha amiga; lá estava eu, em plena Praça Nossa Senhora de Salete. Na verdade, nunca soube que esse era o nome real daquele espaço em frente ao Palácio Iguaçu. Muita gente, pouca coisa pra se chamar de espaço…


Ouvia batuques, não enxergava senão cabeças a minha frente, de onde vinha o som tão visceral e ao mesmo tempo sublime daqueles instrumentos de percussão; despontava, em tons de verde e amarelo, por entre a multidão, uma trupe de franceses esmurrando tambores e pratos. O ritmo me envolvia.


Transitavam por entre os espectadores, passavam enfileirados, em algumas ocasiões cuidadosamente afastavam o público: um semicírculo formado, batuques ainda mais fortes e ritmados em gritos de guerra entusiasmados. Não entendia nada do que diziam. Uma celebração da música em um tão distinto pedaço de cidade, no centro nervoso, em meio a vida política de uma metrópole afugentada pelo neonazismo e seus seguidores ferrenhos; muitos nem sabem porque lutam, um movimento que encontra fim em si mesmo.


Tentávamos nos aproximar na esperança de ver bem próximos os instrumentos que produziam a sensação de um galpão de samba. Passava por muitos rostos estranhos, encontrávamos uns poucos amigos queridos, parava entre as rápidas apresentações: “Esse é o Gustavo” e olhando para ela “Essa é a Michele”. Ainda passei por Gerson, André, entre outros tão doces companheiros. Minha amiga desprendeu-se, soltamos as mãos, a perdi por uns míseros instantes, voltei a grudá-la em mim, parecia assustada – olhos arregalados e cabeça baixa – nunca me disse nada sobre ser antropofóbica.
 
Finalmente conseguimos encontrar os francesinhos abrindo caminho, entre toques e sorrisos, pela galera encantada com sua arte; mais sorte ainda tivemos, pois decidiram abrir um semicírculo a nossa frente. Fiquei cara a cara com um rosto pintado nas cores quentes da bandeira do Brasil – verdes também eram seus olhos – e, em mãos, dois pratos a postos para se baterem em produção sonora tão graciosa.


Cautelosamente ele se aproximava empurrando-me a fim de ter espaço para a apresentação. Fui observando aquele olhar – compenetramo-nos em uníssono. Quando o palco se formara e então íamos nos afastar, meu impulso falou mais alto: encostei meus lábios nos seus, em beijo sutil e primoroso. Era chegada hora de bater os pratos, me tinha em seus braços, tocou; foi um entrelaçamento de almas em total conformidade com nossos desejos. Afastei-me sem saber se aquele olhar que abandonara era naquele momento de espanto ou lascívia. Toquei ainda meus lábios voltando de dedos azulados com a tinta facial transmitida em nosso momento de calor.


Sumira de vez, minha grande amiga, deixando-me isolado no murmurinho de muitas vozes atentas ao espetáculo; algumas cochichando assanhadas sobre o beijo presenciado. Vasculhei por entre cantos e para meu silencioso procurar sem repostas tive de me aquietar. Cheguei a berrar seu nome – “Michele” – mas foi em vão. Pude então perceber um guindaste se movendo devagar: os artistas, agora malabaristas, subiam pendurados em uma estrutura lembrando os doces enfeites de um berço encantado. Foram alto, tão alto que minha vista observava a Lua, entre nuvens, como pano de fundo daquela cena surrealista. Nem lembrava mais com quem chegara ou porque ficara só podia observar um detalhe: haviam lábios rebocados por um beijo roubado.


*****


Estava tão sem companhia…
Sabia que não podia confiar, em um momento tão sublime de uma apresentação tão esperada, ele acabaria me decepcionando. Incognoscível foi meu impulso de chamá-lo; tinha pedido companhia a tantas amigas e recebi tantas negações – Ah o desespero e medo da solidão – mesmo por uma noite não conseguiria suportar a real situação de uma vida sem amigos.


Sempre fora meu companheiro em passeios pelos shoppings ou idas ao salão de beleza, funcionava tal qual uma agenda de compromissos que ajuda-nos há organizar nossos dias.


Um beijo…


Já não bastasse a multidão a qual tive de ser apresentada: um monte de pintosas observando carnalmente os artistas; ainda tive de presenciar aquela falta de respeito com os espectadores. Onde imaginava ele estar? Em meio a sua comunidade onde essas cenas bizarras são comuns?


Na verdade, onde estava eu? Sozinha mais uma vez, perdida naquela multidão, me desprendera da única pessoa capaz de aturar meu mau humor; não via senão estranhos ao meu redor. Será que ele entende a sua utilidade pra mim? Será que sou útil também para alguém?

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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