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Pensamento inconstante

Redação Lado A 21 de Setembro, 2009 22h58m

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Uma gota caiu sobre meu rosto; logo desabou muita água gélida sobre nós. Todos corriam, buscavam algum abrigo, eu me deixava molhar entregue ao meu acaso. Um estoicismo coberto por coragem enfrentava bravamente aquele momento. Pude observar um efeito típico: mulheres em excesso na rave e homens escolhendo quais queriam ajudar, baseando sempre suas decisões nos padrões vigentes que determinavam beleza exterior.

Só tentava imaginar como chegara àquela situação degradante; tudo começou com uma simples caça on-line. Novato na capital paranaense, completamente sem amigos, tirando alguns poucos companheiros conterrâneos que se mudaram na mesma época, como seria complicado chamar algum deles para me acompanhar; como me explicaria? Precisava ser forte aceitando meu infortúnio: a água gelava meu corpo naquela madrugada, entre pingos mais grossos e ventania, fui também gelando meus pensamentos refletindo sobre minhas ações.

Estava fresco em minha memória, um momento temeroso, visualizara uma arma; havia pegado uma carona, conforme combinado pelo messenger com meu ficante: sua irmã me conduziria para aquela festa. Naquele carro, junto ao motorista, ela se sentia imponente e inexoravelmente feliz. Já em minhas entranhas havia um medo constante, parecia arrastar-me, sem forças, melancólico, forjado por meu desejo. Era não mais poder exercer minha vontade, um prisioneiro, preso pelas armas que seduzem, transformando aquele extinto coração tímido. Havia também um querer inexplicável…
Gelei ao ver passar outro carro, voando: esposa enraivada vinha cobrar suas posses, tal qual um mestre grita urrante buscando seu escravo, liberto, desalgemado sem sodomização. Vislumbrei então um pesadelo, baseado na discussão formada: motorista exaltava-se com sua amante. Suspeitas confirmadas; observei aquele objeto mortal pela primeira vez, empunhado pelo motorista: “Eu é que mando nesse casamento, ela vai ver”.

As relações estão tomadas por um vazio infinito e aquela briga, como tantas outras, terminou em discussão branda onde todos perdem, mas ninguém se sente vencido…

Senti algo vibrar, celular no bolso, bateria quase finda, me assustei e correndo achei um abrigo; aquela árvore parecia ter surgido para mim. No palco trocavam-se DJs, meu amante cibernético descia, acabara seu turno – abertura – na pick up. Sem hesitação fui, molhado, encontrá-lo: ele também se protegia em um pequeno toldo, segurando uma nota, enrolada, formando um canudo. Aquele pó branco era aspirado com grande entusiasmo. Assustei-me, mas tive coragem: “Oi, tudo bem? Sou o Diego!”. Seus olhos passaram despercebidos por mim: “Quem?”. Sem ânimo para mais conversa, desisti.

Voltando para meu abrigo, senti fortemente que estava só, mas não pude admitir; ainda naquela época acreditava nas máximas sobre masculinidade induzidas em minha cabeça desde muito cedo, já na infância. Era um homem, não podia sentir solidão ou desprezo, esses sempre foram, segundo minha cabeça dizia, exclusividades femininas. Quem dera pudesse ter autonomia naquela época para confrontar tanta besteira, nunca teria passado por tão grande infortúnio.

Tentando livrar-me daquele sentimento avassalador fui nutrindo esperanças: talvez sua irmã quisesse ir embora, então eu conseguiria ficar mais calmo. Claro isso foi apenas uma ilusão. Procurei por todo lado, andei pelas tendas, protegendo meu celular; nem sei porque me preocupava tanto com aquele aparelho, como se fosse ser salvo repentinamente. Por horas, em vão, busquei encontrá-la – só restavam alguns poucos lunáticos pulando na lama, totalmente fritos – sem esperanças.

Ainda fiquei, aguardando passar aquele temporal, vendo os que tanto recriminei serem carregados pelos amigos, enquanto amargava minha situação. Estava praticamente só; restavam uns poucos animados ainda pulando.

Saí, sentei na grama enlameada – muitos carros saiam também, eu via acenos ou seriam risos escarnecidos? Nem me lembro mais – pensando em como poderia sair daquela situação, deixado para trás em uma cidade que mal conhecia; Balsa Nova.

Arrepio, mãos endurecidas pelo tempo, uma delas tocava meu ombro direito, um senhor em seus cinqüenta anos provavelmente, apoiando sentou-se ao meu lado; trazia um guarda-chuva. Finalmente alguém para me ouvir, ninguém te trata bem quando esta só, é como se o único intuito para uma pessoa andar sozinha seria buscar sexo, te entendem tarado. Solidão, pré-julgamentos, um mundo afogando-se na mesma proporção em que matam nossa necessidade biossocial por sermos mais humanos.

Ele foi breve, era caseiro, trabalhava numa chácara próxima dali. Disse confiar em mim, meu primeiro alívio; fomos caminhando, dividindo, conversando, minha noite ganhou novo alento.

Dormi em um pequeno colchão, jogado ao chão, encostado em uma parede úmida. Seu quarto era para mim majestoso. Emprestou uma toalha, dormi sem roupas mesmo, corpo seco. Pela janela pude ver escorrer muita água, torrencial, tentei também afogar meus pensamentos; consegui dormir.

“Acorda” levantei assustado. Seu patrão ia chegar logo, eu precisava ir, senão ele estaria fodido.

“Obrigado por tudo, seu Manoel!” recebi um sorriso em troca “Tem uma jardineira daqui uns quinze minutos, vá por essa estrada em frente até chegar numa praça… Lá tem ponto”. Sem mais chuvas, fui caminhando pela estrada coberta por lama; minha roupa ainda molhada, meus sapatos formando crostas. De repente, chuva novamente; corri. Não foi suficiente, perdi meu ônibus. Temporal intensificado. Ainda tentei bater na lateral, mas não fui ouvido.

Encontrei uma marquise, segurei meu choro – era puro ódio. Um único pensamento me restava: “Quero minha casa”. Senti vibrar meu celular. Susto, eu havia mantido protegido na cueca. Imaginei como seria difícil contar para meus amigos aquela situação vivida…

Mensagem estranha. “Cúpido”, dizia na tela. Nem lembrava que ainda estava cadastrado nisso. Ri pela primeira vez naquela aventura, ao ler: “Oi, quer tc?”. Visor apagou-se; a bateria acabara por completo.

Redação Lado A

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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