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Àqueles momentos que nos afetam para o resto da vida

Redação Lado A 25 de Maio, 2010 20h36m

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O ser humano é mesmo um bicho complicado. Fazemos análise, dizemos que o tempo cura, mas no fundo tem passagens da nossa vida que criam marcas tão profundas que é impossível de perdoar ou mesmo se perdoar. Esta semana me peguei pensando um episódio que passei e o sentimento de revolta bateu e embrulhou o meu estômago e coração. Esses momentos que passamos e raramente comentamos com alguém, mas que de certa forma nos moldaram e que grudaram em nossa alma profundamente.


Tenho certeza que já fui o algoz alheio e criei esse tipo de sentimento infeliz e que por mais que eu peça desculpas ou perdão, sei que alguém deve ter ferido também. Às vezes a gente machuca as outras pessoas e nem sabe. Alguns momentos me marcaram, e não são referentes a sexualidade, namoros ou brigas, são coisas banais que te marcam para sempre.


Uma vez eu estava no cinema, vendo acho que Virgens Suicidas, e havia um grupo de crianças brincando com o celular nas cadeiras em frente à tela. Depois de uns 20 minutos, um telefone ficou tocando e eu fui até lá e perguntei se era de alguém. O aparelho irritante estava sobre uma poltrona vazia. Com a negativa dos “aborrecentes”, peguei o celular e desliguei. Uma menina de uns 12 anos gritou que era dela, eu falei: “Então vem aqui fora que eu vou te devolver” e saí da sala em busca da administração do lugar. Sei que o cinema não fez nada, devolvi o troço, voltei a ver o filme e na saída estava lá o pai de um dos pirralhos para me intimar na porrada. Como não queria briga, estava acompanhado, acabei por ouvir diversas humilhações e repetir sobre a educação dos filhos do cara, que se disse advogado. Eu tinha uns 20 anos e não era tão esperto quanto hoje. Eu teria chamado a polícia se fosse agora. Mas depois de uns minutos, um lutador de jiu jitsu entrou entre eu e o cara, já estávamos dando de dedo um na cara do outro, e me defendeu, dizendo que as crianças realmente incomodaram e que eram mal educadas. O assunto acabou ali, mas aquela cena me marcou muito, por eu não ter reagido.


E quando nós não reagimos é pior. Por mais que eu defenda a paz, é preciso reagir. Hoje, como disse, chamaria a polícia, questionaria a classificação indicativa ao cinema e até processaria a sala de exibição ou o shopping onde ocorreu. E acho que temos que reagir, processar, parar essa de ter medo de exposição e aturar tanta coisa. Talvez a fase que eu vivia não fosse tão boa, não sei.


Sei que depois aprendi. Precisamos reagir, nem que com um desabafo na internet, com um boicote ou beijaço. Lembro que alguns anos depois, eu estava com dois amigos em um shopping quando três seguranças vieram nos pedir para sair dali. Alegaram que eu não poderia estar consumindo bebida naquele local. Depois saquei que era homofobia, pois não havia argumento e nem sustentação para três brutamontes irem dar um aviso como esse. E estávamos a três metros de um café. Depois descobri que um empresário de uma loja de games, que estava inaugurando no dia, se incomodou com os gays ali na frente. Mas na ocasião eu trabalhava no grupo Dignidade, tinha acabado de voltar de Portugal de um congresso sobre ativismo jovem, bem, desta vez reagi(mos). Eu e amigos criamos o “Encontro contra o Preconceito” que rodou os shoppings da cidade e fez maior bafo na mídia. Começou com mais de 20 pessoas, até uma travesti amiga, andávamos com a bandeira do arco-íris, isso em 2002… depois, no final, éramos meia dúzia. Até hoje alguns ainda se lembram dessa história, mas, com certeza, transformei o que poderia ser mais uma ferida em uma vitória, pelo menos nas minhas lembranças.

Então, se você sentir que foi humilhado, reaja de modo consciente, talvez não no momento e de cabeça quente, mas não deixe que esse sentimento entre em você e crie uma lembrança terrível, não do fato, mas de que você não reagiu.

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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