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O espírito republicano

Redação Lado A 28 de Setembro, 2010 00h18m

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Em 1889, o Brasil adotou o regime republicano,  com a eliminação da realeza e da hereditariedade da chefia de Estado. Um conjunto de valores inspirava os republicanos, em especial aos positivistas:  o do tratamento juridicamente igual em relação a todos os cidadãos; o da ausência de privilégios e de distinções resultantes do nascimento; o da  laicização do Estado, com a abolição do caráter oficial cristianismo e a instauração das liberdades de crença e de descrença; o  da dedicação de todas as forças sociais ao serviço da comunidade; o da moralidade na política; o da fraternidade como critério das relações humanas; o da plenitude da liberdade de expressão.


Transcorridos cento e vinte e um anos, se se proclamasse a república neste ano de 2010, quais seriam os ideais republicanos? Além da conservação dos presentes já em 1889, eles incluiriam, certamente, as liberdades de costumes e de votar ou não; a inteira laicização do Estado, a moralização da vida política e a elevação da qualidade do pessoal político.


I. Ao tempo da instauração da república, a sexualidade em geral correspondia a um tabu, ou seja, a um assunto proibido, tanto quanto a homossexualidade, tratada como doença e repudiada pela mentalidade que então prevalecia. Eis porque, na mudança de perspectivas e de instituições que representou o novo regime,   nada se incluiu relativamente aos costumes de família e à vida sexual,  sequer mesmo a educação sexual. Os monárquicos e  os republicanos de todos os matizes comungavam de idêntica mentalidade, própria do seu tempo. Seria exigir demasiado que estivessem, quaisquer deles, adiante do seu tempo, nisto, ao menos, que não se relacionava diretamente com as instituições política e sim com o estilo de vida privado.

Vivemos em um Estado republicano politicamente, porém não em termos de costumes, em que faltam a igualdade de todos, quanto ao matrimônio homossexual, e a igualdade, face ao desrespeito, ainda presente, pela condição sexual e afetiva das pessoas. Nestes dois aspectos, a formação de muitos dos nossos compatriotas é antirepublicana, fruto de que, entre nós e por décadas, a moralidade equivaleu à ausência de liberdade de costumes e à repressão sexual, por influência de certas passagens da Bíblia e do cristianismo, como formador das consciências, hoje acompanhado, na sua doutrina moral, pelas inúmeras seitas cristãs que despontaram no Brasil e que reúnem um grande contingente da população. 

 A instauração da república deve completar-se com a adoção de uma mentalidade que lhe  corresponda por inteiro. Republicanizar as mentalidades significa laicizar os costumes, ou seja, libertá-los dos seus conteúdos de origem teológica e atribuir-lhes motivações puramente humanas, fundamentadas na realidade própria do ser humano, particular em que os nossos governantes vem demonstrando ausência de republicanismo, pelo desinteresse dos deputados federais e senadores por aprovarem o casamento homossexual com adoção de filhos, tema novo e atualíssimo, o que mantém uma parcela dos brasileiros fora da igualdade republicana: a existência do preconceito agrava-se com a inexistência de uma educação política necessária para que os nossos políticos se mantenham ao nível do regime sob o qual vivemos, nisto e nos aspectos precedentes.

 As bancadas evangélica e católica, fiéis ao seu dogma de reprovação da homossexualidade, ao invés de se limitarem a acatá-lo, no âmbito da sua religião, pretendem estendê-lo à toda a sociedade, ou seja, inclusivamente a quantos não aderem a ela ou não comungam das suas repugnâncias. O veto ao casamento homossexual corresponde a uma interferência direta da religião de alguns, na vida privada de outros e à manutenção de uma desigualdade injusta.

II. A república deve completar-se, institucionalmente, com a laicização do Estado, que se deve tonar neutro em relação aos credos religiosos e à sua ausência, o que implica, na prática, a remoção de todos crucifixos dos estabelecimentos governamentais, da frase “Deus seja louvado”, do papel-moeda,  do ensino religioso nas escolas públicas e dos feriados católicos. Até o governo de Getúlio Vargas, nada disto existia:  o Estado desconhecia as religiões quaisquer, que pertenciam, exclusivamente, à privacidade dos seus adeptos. Paulatinamente, contudo, certa religião, o cristianismo, serviu-se do Estado para, por meio dele, difundir os seus sinais e os seus dogmas, segundo, aliás, a sua prática invariável, ao longo de toda a sua história. 

A monarquia brasileira adotou o cristianismo como credo oficial, vale dizer, como religião de Estado; exigia-se juramento de fidelidade a ele como condição de acesso aos cargos eletivos, ao mesmo tempo em que se destinavam os cemitérios exclusivamente aos seus fiéis e o clero recebia a côngrua do Estado. Tudo isto desapareceu em 1889, ao passo que, atualmente, retrocedemos a uma situação em que, novamente, o Estado, em alguma medida, adota uma fé e interfere nas consciências, ao invés de ocupar-se exclusivamente da coisa pública. 

III. A república deve completar-se com a moralização da vida pública, ou, mais exatamente, do comportamento dos políticos e dos agentes governamentais, pela presença do senso de dedicação à sociedade e do escrúpulo que leve à repugnância de servir-se o governante do Estado, por meio de salários e aposentadorias elevados, de foro especial, de benesses parlamentares, do peculato e do clientelismo,  que constituem os políticos em uma casta privilegiada pelas suas prerrogativas legais, frequentemente corrupta, moral e materialmente.

IV. A república deve completar-se com a substituição da obrigatoriedade de votar-se pela sua facultatividade: o exercício do voto deve resultar de um ato da livre vontade do cidadão, dentro da sua liberdade de consciência e da sua confiança, se a houver, no candidato que sufraga, e no interesse, se o tiver, de participar da vida pública, ao invés de provir uma imposição, contrária ao espírito de liberdade que inspirou a nossa república.

V. A república deve afirmar-se com o melhoramento do nível do pessoal político. Tratar da coisa pública representa um encargo que supõe cultura, instrução, discernimento, ciência da realidade nacional, planos de futuro, atributos que impõe aos governantes uma responsabilidade gravíssima, do que não se apercebem os inúmeros indivíduos que, dentro do seu despreparo, da sua rudeza cultural, do seu primitivismo, candidatam-se e, graças ao voto de eleitores igualmente primários, acedem às funções legislativas. 

A liberdade republicana, em que a todos se permite concorrerem aos cargos eletivos, deve supor, nos cidadãos, um mínimo de sentido de responsabilidade, que iniba os despreparados de os disputarem e os eleitores de os sufragarem. Cada povo tem os parlamentares que elege.

“Sem liberdades não há verdadeira república”, dizia o positivista Teixeira Mendes, que tantas vezes evocou a sentença de José Bonifácio de que “a sã política é filha da moral e da razão”: nem sem liberdades, nem sem igualdades, nem sem moralidade e nem sem qualidade dos seus agentes.

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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