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Por vontade própria

Redação Lado A 03 de Novembro, 2010 15h49m

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Antes que a colocassem numa cadeira de rodas, olhou pro alto e vislumbrou aquela instituição: em azul escuro se lia “HOSPITAL  MATERNIDADE”. Sentou. Seu braço direito caiu levemente tocando sua barriga, dedos com gotículas de suor fizeram uma palma suave deslizar pela pele inchada. Sua mão esquerda tocou delicadamente o umbigo.


Guinada repentina. Seus pés flutuaram por poucos segundos. Cabeça jogada pra trás vendo, num relance, o teto, noutro, um corredor. Várias mulheres, encostadas, descansavam em suas macas. Chamou-lhe a atenção uma futura mãe que segurando um prato metálico – lembrando muito uma bacia – comia enquanto sentava sobre a perna esquerda.


Agigantou-se essa figura conforme se aproximava pelo impulso do enfermeiro que conduzia sua cadeira; foi empurrada com certa estupidez pra grudar na parede; elas ficaram lado a lado. Rapidamente se acomodou, contudo sentiu falta de algo, ou alguém: “Cadê minha mãe?” pensou em voz ligeiramente alta.


“Eles num “deixa” que elas fiquem aqui” respondeu com tom amigável aquela garota que observara anteriormente; Aquela estranha estendeu o braço esquerdo tocando seu ombro enquanto abaixava um pouco o corpo – o quanto podia – para beijar-lhe o rosto em cumprimento: “Sou Jana”.


“Mariah, com h no final” disse a cadeirante, abrindo um entusiasmado sorriso pela nova amizade. “Que chique, o meu é de Janaina mesmo sem letras especiais…”; riram da situação e travaram conversa animada. Mariah vislumbrou aquele rosto, deu-lhe uns vinte e oito anos. Espantou-se quando soube a real idade de sua companheira de enfermaria: dezesseis.


“Como seus pais reagiram?” perguntou Mariah com voz temerosa, mas branda. “Adoraram, esperavam por isso fazia meses!” respondeu calmamente. “Sério?”.
“Sim, té já fizeram meu enxoval, minha mãe me deu umas famílias dela preu faxinar e ganhar uns trocos pra começar nossa família” disse abrindo leve sorriso no canto da boca onde seus lábios se desprenderam.


“Nossa família? Cê é juntada?” falou a cadeirante temporária com espanto na voz, contudo recebeu carinho em retorno dum brado suave “Claro, por isso decidi ter meu filho”.


Um homem aproximou-se. Ele puxou aquela cadeira: “Conseguimos uma maca”. Levou-a então para um quarto lotado onde, distante e deitada entre tantas outras estranhas, sentiu falta daquele acolhimento inicial recebido. Lembrou daquela menina com rosto de mulher. Assim que passou esse pensamento deparou-se com o fato de que também era uma menina em corpo adulto.


Tão logo deixou suas coisas próximas daquela cama, não confortável, mas acolhedora, voltou andando apressada, com dificuldade, mas bem apressada praquele corredor donde estava outrora: sua amiga estava na janela.
 “Sentindo falta da sua liberdade?” perguntou Mariah; seus lábios preguiçosos mal se moviam. “Eu sô livre” respondeu com olhar escarnecido aquela Jana enquanto encostava a mão no vidro, sentindo calorosas pulsações.


Mariah não resistiu a uma contração forte que lhe tomou o ânimo naquele momento; sua amiga puxou um banquinho plástico, sem encosto, sentando-a e impedindo aquela futura mãe de gritar ou fazer escândalo: “Num grita, eles trata muito mal quando a gente dá trabaio”. Segurou sua mão, apertou. Gemendo baixinho, foi suportando. Dor passageira, mas intensa. Quando estava livre, olhou pra Jana, sentiu-se protegida e manteve seus dedos tocando aquela pele calejada, gasta, amigável e sensível.


Falaram então sobre suas vidas, Jana comentou da aceitação familiar, do status social que lhe renderia o casamento e futuro filho. Precisava ser aceita, ou melhor, queria ser aceita. Mariah, por sua vez, discorria sobre a má sorte que lhe ocorrera: o abandono do namorado uma vez ciente da paternidade, o apoio tímido da mãe, a ausência de seu próprio pai.


Gritou. Nova pontada muito forte, repentina, como se uma faixa apertasse toda aquela região abdominal sensibilizada pela dor. Correu na sua direção um enfermeiro. “Tá fazendo o que aqui?”. Ela olhou pro chão, delatada por sua histeria, calou-se, nem recorreu ao afago fácil que teria se apertasse àquela mão com unhas femininas sem esmalte; esquivou-se do protesto, entregou seu corpo, foi levada pra enfermaria correta.
Deitou, levantou joelhos, pés descalços, feridos, calcanhar vermelho e inchado; aquele inchaço que consome, mas indica o fim de uma jornada. Dormiu.


Acordou. Gritos de dor extrema indicavam que a falsa paz havia sido alterada naquela sala; enfermeiros correram levando uma mulher às pressas; o espaço ao lado esvaziou-se; esvaziando um pouco também aquele ambiente; era tal qual chão de fábrica onde carregavam humanas freneticamente pro abate.


Olhou pra porta. Parada estava àquela menina, de pele parda, marcada pelo sol. Jana então se aproximou, segurou suas mãos: “Achei que cê tinha ido! Pensei que tinha perdido minha nova amiga”.


Novo estrondo. Trouxeram a maca vazia, colocada no mesmo lugar; estranha visão dum recipiente que perdera seu conteúdo.


Ficaram inertes ao mundo exterior, suas almas se entrelaçaram através daquele calor latente; naqueles olhares encontraram afinidades em sentimentos ímpares. Jana saía, mas foi puxada: “Num quero ficar sozinha” disse a outra com voz tensa, olhar perdido.


Juntaram aquela maca vazia, aumentando a cama improvisada; observaram suas companheiras de recinto ou totalmente absortas em um sono profundo ou apenas viradas pra parede esperando sua hora. Esquecendo a realidade que as circundavam ficaram bem próximas, deitadas de frente uma pra outra, barrigas que roçavam em tesão latente, aguçadas por uma curiosidade imensa; Mariah tocou no rosto daquela futura mãe, passou dedos bem suavemente acariciando a pele, fechando olhos alheios, massageando pálpebras e com seu dedão movendo, pêlo a pêlo, sobrancelhas eriçadas. Guardou seus braços.
Jana, com dificuldade imbuída por intensa vontade, baixou-lhe a camisola, expondo seios alheios, tocou. Com maior dificuldade ainda aproximou-se, lambendo uma pequena gota de leite que escorria daquele mamilo proeminente; a sensação agridoce da mistura com o suor retraiu seu toque, todavia continuou alcançando prazer.


Claridade lunar tomou toda enfermaria, cobriu aquelas amantes já desmaiadas pelo cansaço.


Dor. Jana acordou segurando um grito e foi quando observou que estavam cercadas por outras pacientes espantadas pela cena naquela cama, tentou levantar e não resistiu, berrou com força.


Mariah acordou assustada vendo sua companheira ser levada; estava cercada, acusada por mentes que julgavam sem refletir… Ainda levantou com dificuldade… Chegou à porta daquela enfermaria, mas sua amiga não estava mais naquele corredor, ainda encontrou uma cadeira vazia de onde puxou um pedaço de toalha rasgada; levou ao rosto aquele pano, enxugando sua bochecha que estava em grande vermelhidão, de onde secou suor torrente… Abaixou a cabeça e refletiu sobre como seria quando também chegasse sua vez… Decidiu contemporizar suas lamentações…

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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