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A caderneta do mal

Redação Lado A 15 de Fevereiro, 2013 03h18m

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O texto abaixo é parte do livro “4D Autobiografia de um bissexual”, de Alvez Alves, gentilmente cedido pelo autor. O capítulo 23, A caderneta do Mal, fala sobre o submundo do sexo bissexual e gay em Curitiba. Precisamente de um homem que faz bareback, sexo sem camisinha, com intuito de passar o vírus hiv indiscriminadamente.
O livro é uma história real, segundo o autor, que conta a saga de um rapaz bissexual que sobrevive a traumas e preconceitos para encontrar o seu lugar ao sol. O livro exemplifica a bissexualidade e o submundo onde homens casados convivem com o desejo bissexual com encontros furtivos pela capital curitibana. O livro fala de amor, de auto aceitação, de preconceitos, mas, antes de tudo, fala de um ser humano que deseja honrar a sua existência, compartilhando com os demais o que viveu.

Introdução por Allan Johan

 

A caderneta do mal

Por Alvez Alves

Dionizio diz:
— Olá, quem?
Cliente diz:
— Consegui seu contato no site de relacionamentos. Você é michê?
Dionizio diz:
— Não, exatamente. Digamos que realizo fantasias sexuais, mediante uma pequena contribuição.
Cliente diz:
— Quanto?
Dionizio diz:
— R$ 120,00.
Cliente diz:
— Faz “bareback”?
Dionizio diz:
— Nunca, jamais!
Cliente diz:
— Pago o dobro.
Dionizio diz:
— Não curto essas coisas. Não quero somar o histórico sexual de ninguém a minha vida.
Cliente diz:
— Ok, anota aí o endereço que, até você chegar, consigo alguém que deixa eu ejacular dentro dele.
Tomei um banho, coloquei minha lente de contato verde, que fazia parte do figurino de Dionizio, minha aliança de ouro e saí mais uma vez vender prazer em direção ao Bairro Portão. Chegando lá, tomamos um vinho e começamos a conversar. Seus olhos fitavam o volume que meu pênis fazia em minha calça justa. Colocou a mão na minha perna, enquanto me olhava com um desejo descomunal. Tocou a campainha, e ele disse, sorrindo:
— Com licença, preciso atender, chegou o nosso passivo.
Apresentou um rapaz simpático, de aproximadamente 23 anos. Conversamos por alguns momentos enquanto bebíamos vinho. Não conseguia entender como aquele jovem, com uma vida inteira pela frente, se submetia a transar com alguém que nunca viu na vida sem preservativo, mas cada um é dono do próprio corpo e não me cabia interferir. Tiramos a roupa e fomos pra cama, onde o jovem se entregou, como um sodomita. Eu o penetrei com preservativo, e o dono do apartamento sem. Percebi que aquele pobre jovem ofereceu seu corpo e sua vida a um desconhecido, que ejaculou dentro dele sem nem ao menos conscientizá-lo do risco que corria. Fui tomar banho e, quando saí do banheiro, o jovem já não se encontrava no recinto. Percebi que aquele senhor estava sentado em sua cama anotando algo em uma pequena caderneta. Mesmo sem querer, vi que ele tinha feito dois riscos em meio a vários riscos na caderneta. Pra descontrair, perguntei:
— Nossa, você anota a quantidade de homens que leva pra cama?
Com um olhar de “não estou nem aí”, ele respondeu:
— Olha, Dionizio. Só vou te contar porque sei que nunca mais nos veremos, pois não vejo necessidade de pagar por sexo, levando em consideração que sou um homem maduro, mas ainda bonito e atraente. Existem pessoas que se excitam com várias coisas: acessórios, vibradores, se tranvestir, bater, apanhar, ser estuprado, etc. Eu sinto prazer em transmitir o vírus HIV.
Meus olhos se encheram de ódio e vergonha por ser gay e fazer parte
de um mundo onde existem pessoas assim.
— Onde já se viu um ser humano sentir prazer em disseminar DST’S? – perguntei.
Ele tentou justificar seu fetiche, mas não me convenceu. Insisti:
— Pela quantidade de riscos na sua caderneta, você deve ter contaminado muita gente, mas percebi que acrescentou mais dois riscos. Como explica isso, se eu usei preservativo o tempo todo?
Sarcástico, respondeu:
— Você olhou na mão do cara que saiu agora daqui? Carregava uma aliança de ouro, dando a entender que é casado e, com certeza, com “amapoa”.
Saí de seu apartamento arrasado com tamanha crueldade. Como alguém sentia prazer em tal ato? Coitado daquele jovem e sua esposa. Pior ainda se ela estiver grávida ou amamentando, pois a tragédia seria completa.
Cheguei em casa e não conseguia deixar de pensar naquele fato. Tudo poderia ser evitado simplesmente com preservativo. Por que aquele jovem se submeteu a isso?
“A crueldade e covardia são as piores atitudes cometidas pelo ser humano. Ninguém merece sofrer por ser bom e gostar tanto…” (Eliana Sidaco)
A partir daquele momento, procurei conscientizar as pessoas da maldade que poderia existir no sexo. A cada cliente que me contratava, depois de fazer meu trabalho, entregava um folheto que eu adquiria em postos de saúde, que continham informações sobre DST/AIDS. Alguns achavam estranho um garoto de programa se preocupar com a saúde dos clientes. Com isso arrumei muitos clientes amigos, que mesmo pagando por sexo, passaram a me admirar como pessoa.
Como eu já estava separado da Tiana, nada me impedia de atender mulheres também. Como foi difícil, depois de tantos anos casado, me entregar a outras mulheres, mesmo sendo sexo pago. Às vezes me procuravam casais (homem/mulher), bissexuais, em que a mulher sentia prazer em ver o marido se entregando passivamente a outro homem, ou dois homens a possuindo.
Às vezes atendia mulher sozinha, que para se vingar do marido ou namorado, decidia se entregar a outro homem e achava conveniente que fosse sexo pago. Assim que abria a porta do meu apartamento, a maioria delas primeiramente tentava justificar o porquê de estar ali. Uma das justificativas mais usadas era o fato de que foram traídas, ou mesmo por insatisfação sexual ou no dia-a-dia. Algumas delas reclamavam que seus companheiros não sabiam nem pra que servia um clitóris, que não as admiravam e precisavam disputar espaço na vida deles com a cerveja, amigos e futebol. Com isso, percebi que não éramos só nós, homens, que nos sentíamos insatisfeitos em nossos relacionamentos, mas elas também. Percebi que para muitas delas, o tamanho do pênis do companheiro não importava, mas para algumas dessas mulheres que me procuravam, o pênis gigante era o essencial. Sempre que uma mulher solicitava meus serviços, eu me preparava pra oferecer muito mais que sexo.
Elas buscavam alguém pra conversar, admirar seus cabelos, sua maquiagem, seu estilo, e eu estava ali para preencher esse vazio deixado por seus maridos. Coisas importantes na vida de uma mulher, que nem sempre encontra em seus relacionamentos. Diante dessas reclamações, notei que o homem ideal pra uma mulher seria um bissexual, ou seja, só um homem com alma de mulher passaria um dia inteiro num shopping sem reclamar, e perceberia o novo nuance de seus cabelos, daria mais importância em ficar em casa com suas companheiras e filhos ao invés de ir para o futebol, ou beber cerveja com os amigos.
A maioria dos homens heterossexuais prefere usufruir da companhia de mulheres apenas na hora do sexo. No futebol do fim de semana, na pescaria, no bar, preferem a companhia dos amigos.
Certo dia, fui procurado por um casal de políticos de Curitiba. Ela, muito linda, com seus cabelos nos ombros, e ele, todo elegante em seu terno importado. Fomos para um motel na Rodovia dos Minérios, onde, depois de vender meu produto, fui convidado a ser michê fixo deles, pois disseram que gostaram muito da minha simplicidade e discrição. Saíamos pelo menos duas vezes por mês. Certo dia, ela ligou e disse que queria me ver. Perguntei por seu marido e ela respondeu:
— Ele foi viajar, a trabalho.
Achei muito estranho, mas fui ao encontro dela. Chegando ao motel escolhido, ela estava na banheira de hidromassagem me esperando. Transamos igual a dois animais, até explodirmos em um orgasmo mútuo. Enquanto se apoiava em meus braços, disse:
— Eu quero você pra mim.
Respondi:
— Quando quiser, é só ligar.
Continuou:
— Eu quero você só pra mim.
Assustado, respondi:
— Como assim? Você é casada com um político renomado, e eu sou apenas um mísero michê.
Ela disse que em sua vida de casada nunca sentira um orgasmo, que eu a levava às alturas, que me amava e queria estar sempre comigo. Argumentei, dizendo que ela estava confusa e que tinha por mim apenas gratidão, e não amor. Sugeri que ela conversasse com o marido e colocasse o que sentia em relação a suas frustrações e necessidades. Saí dali pensando como minha vida poderia mudar se eu aceitasse sua proposta. Poderia realizar meu sonho de tirar meu filho da periferia, mas não a amava, e só a faria sofrer. Minha mãe, Dona Toninha, sempre dizia que o homem tem que comer do seu próprio suor, e jamais deitar em uma cama que não ajudou a comprar, ou comer de uma comida que não ajudou a colocar na mesa.
Uma das minhas maiores virtudes é a honestidade e humildade, herança de minha mãe. (Dona Toninha)
Nos encontramos mais vezes, mas sempre priorizei a presença de seu marido. Nunca soube se ela decidiu conversar com ele e buscar uma solução, ou passar o resto da vida frustrada sexualmente, buscando no sexo pago o orgasmo que seu marido não era capaz de proporcionar. Como Dionizio pagava minhas contas, mas sentia a necessidade de levar alguém pra cama, por isso, às vezes, eu também incorporava o “Danniel”, e saía à caça de prazer pelo prazer. Minha vida estava aparentemente feliz. Quando era procurado, recebia por sexo; quando eu procurava, buscava o prazer, e encontrava homens e mulheres dispostos a me oferecer tudo isso. Assim, sentia muito medo do futuro. A prostituição masculina é mais duradoura que a feminina, mas um dia eu seria “impróprio para o consumo”, e aí, de que viveria?
“O medo é a extrema ignorância em momentos muito agudos.” (João Guimarães Rosa)
Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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