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Na margem da ambigüidade sexual

Redação Lado A 16 de Setembro, 2013 21h29m

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É raro encontrar beleza poética em um comunicado de imprensa. Especialmente, quando se está descrevendo o processo durante o desenvolvimento fetal, momentos antes de ocorrer a atribuição de sexo ao feto. Digo apenas – pense sobre: Como será estar na borda deste penhasco biológico? O que acontece se olhares além? O que espera lá do outro lado? Estariam preocupados em cair, esperando para pular, ou felizes vivendo no gume? Isto é claramente algo de poesia e humanidade vindo de um comunicado de imprensa da Universidade Case Western Reserve, alguns dias atrás.
 
O comunicado descreve um estudo conduzido por Michael Weiss e seus colegas da área de Medicina, que por muitos anos analisam dos modos mais meticulosos imagináveis o que é que nos faz pensar sobre nossos corpos como um sexo ou outro, exclusivamente masculino ou feminino.
 
Um pouco de informação de fundo para melhor compreensão é necessária: Apesar de ricas e variadas histórias que demonstram que este não é o caso, muitas sociedades funcionam na premissa de que todos os humanos são facilmente classificáveis como machos ou fêmeas, e que podemos identificar quem é quem analisando genitais, hormônios e cromossomos. Geralmente, a experiência humana (uma das coisas a quais denominamos “cultura”) é justaposta com a ciência neste ponto. A ciência, nos dizem , é mais seca e direta. Porém não o é. Medicina e ciência por muito tempo documenta que humanos não são facilmente classificáveis em um dos dois sexos. Se analisarmos as pesquisas com cuidado, a diversidade sexual, ao nível de aparência genital, hormônios e cromossomos, é presente e previsível em humanos. Usando a linguagem da normatividade, o fato de alguns de nós não coubermos em uma das duas caixas é tão normal quanto o fato de que alguns de nós coubemos sem problemas.
 
Como o Professor Weiss explica, o estudo da biologia do desenvolvimento humano fixou-se no modelo de duas categorias baseado no entedimento que corpos humanos desenvolvem-se de uma maneira consistente ou fidedigna pois “Evolução favorece a segurança. Interruptores robustos asseguram-se de que nossos programas genéticos sigam um plano corporal consistente que garantem que bebês tenham um coração, dois braços, dez dedos, etc.”
 
Os interruptores que Weiss se refere são uma forma de pesquisadores como ele conceitualizarem expressão genética e desenvolvimento sexual. Essencialmente, pensa-se, que todos os fetos começam com “tecidos femininos”. Em algum ponto do desenvolvimento fetal um “interruptor” é ativado e como resultado o feto começa a desenvolver “tecidos masculinos”. Eventualmente testículos se desenvolvem, o que produz testosterona, o que por sua vez informa o desenvolvimento da genitália masculina.
 
Você já deve ter ouvido alguém falar que todos nós começamos como mulheres. É a isso que eles estavam se referindo.
 
Então a teoria é que para podermos ter corpos que possam confiavelmente sobreviver e reproduzir, nós desenvolvemos “robustos  interruptores”. Em outras palavras, nosso desenvolvimento fetal é mais ou menos imutável, tenaz e fixado, não há muita diversidade.
 
Mas sabemos que há mais diversidade do que a sociedade anuncia. Pensando apenas no sexo a nível cromossômico, existem muito mais do que duas opções. Além das opções populares XY “homem” e XX “mulher”, que ouvimos tanto na escola, alguns de nós têm células com cromossomos XXX, XXY, XXYY, XYY, XO, e a lista continua. Estas “outras” opções são habitualmente referenciadas como anormalidades cromossômicas. Elas não são “outras” ou anormais, elas são cromossomos em corpos, elas somos nós.
 
Para simplificar eu não vou entrar muito no tópico de gênero aqui, mas é difícil não assinalar o fato que existem muitos mais de nós cujos corpos tem cromossomos XY e são mulheres, cujos corpos tem cromossomos XX e são homens, cujos corpos tem uma combinação ou outra mas identificam-se em algum lugar no meio termo ou completamente fora dos modelos populares de gênero que nos é oferecido pela sociedade.
 
De volta aos genes e interruptores sexuais. Em um esforço para entender toda esta confusão entre imutabilidade e diversidade, Weiss esteve procurando por muitos anos um interruptor em particular, o “interruptor mestre” do gene SRY, que inicia o processo dos tecidos fetais mudarem de uma forma que é descrito como desenvolvimento sexual masculino.
 
Neste estudo ele e seus colegas pesquisadores decidiram analisar os genes SRY compartilhados por um pai e sua filha. Neste caso a filha tem cromossomos XY “masculinos”, mas os genes SRY não acionaram o interruptor de maneira previsível, então ela desenvolveu genitália feminina completa (ovários, trompas de falópio e útero).
 
Os pesquisadores assumiram que algo significante deve ocorrer para fazer o interruptor SRY funcionar desta maneira inesperada (na linguagem deles eles suporam que um “insulto severo ao interruptor codificado Y” seria necessário e que estaria próximo de um fator de 100 ou mais). O que eles descobriram é que o limiar no qual o SRY funciona desta maneira inesperada era apenas um fator de dois.  Do comunicado:
 
“Portanto, machos humanos efetivamente se desenvolvem próximo à margem da ambiguidade sexual. Isto significa que, ao contrário das robustas programações genéticas que  desenvolvem outros processos essenciais como função cardíaca, o interruptor mestre do gene SRY é particularmente vulnerável à mudanças. É apenas necessário um leve desvio do processo normal para drasticamente alterar o desenvolvimento sexual do feto. Dada a importância da reprodução sexual para a sobrevivência de uma espécie, porque genes SRY humanos funcionam tão perto da fronteira da infertilidade? A ideia de um interruptor mestre instável pode parecer paradóxica, mas um campo de pesquisa em crescimento sugere que isto deve ser uma necessidade evolucionária.”
 
Weiss hipotetiza que, ao invés de previsibilidade, a diversidade no desenvolvimento sexual é por si mesma uma vantagem evolucionária: “Nós temos este tênue interruptor no cromossomo Y, e antecipamos que o seu presente à humanidade é a mutabilidade no caminho ao desenvolvimento masculino de seus estágios iniciais. A ideia essencial é que nossa evolução favoreceu uma ampla gama de competências sociais. Na pré-história, esta extensão de competências sociais teria dado uma vantagem de sobrevivência à comunidades enriquecidas por uma diversidade de estilos de gênero”.
 
Weiss está se focando em uma parte bem exígua dos nossos corpos, apenas um grupo de genes em um cromossomo. E para ser honesto eu tenho o conhecimento mais rudimentar da tecnologia que permite eles realizarem este trabalho, e a ciência que o descreve. Mas com este embargo, é difícil não pensar nas implicações desta pesquisa não apenas a nível genético mas também a nível social.
 
A noção incorreta de que corpos deveriam encaixarem-se em uma de duas claras categorias e que estes corpos são claramente e visivelmente diferentes de formas fixas e consistentes através do tempo torna viver em nossos corpos difícil e até mesmo intolerável para muitos de nós. E ainda continua a contribuir à prática de executar desnecessárias e perniciosas cirurgias em crianças para fazer seus corpos ajustarem-se com as expectativas sociais, e que não tem relação alguma com a saúde ou beleza de nossos corpos.
 
É difícil pra mim não comemorar bradando aos quatro ventos quando eu leio um Professor de Bioquímica e Medicina escrevendo que todos os nossos corpos, especialmente aqueles que insistem em características sexuais indecidíveis, são um “presente à humanidade” (mesmo eu estando incerto de quem está dando este presente e quem o está recebendo).
 
Em algumas formas esta pesquisa está apenas confirmando o que aqueles de nós que prestam particular atenção à sexo e gênero já sabemos ser verdade. E dado o histórico impreciso da medicina em lidar respeitosamente com corpos que não se adaptem às suas expectativas normativas, talvez eu não devesse me animar tanto assim. Mas eu suponho que fico feliz a qualquer momento que percebo que alguém está falando um pouco da verdade. É um pouco de beleza poética.
 
 
 
Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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