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Procuradoria Geral da República pede novamente a criminalização da homofobia ao STF

Redação Lado A 19 de Junho, 2015 20h54m

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Esta semana a Procuradoria Geral da República enviou ao Supremo Tribunal Federal parecer à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, movida pelo Partido Popular Socialista (PPS) no final de 2013, em que aponta que a omissão do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia deve receber a atenção do tribunal, conforme as suas atribuições constitucionais. Com isso, o parecer se junta ao mesmo encaminhamento feito pela PGR no ano passado, no Mandado de Injunção 4733 movido pela ABGLT, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros, de 2012, em que a Procuradoria Geral da República também cobrou um posicionamento do Supremo e do Congresso Nacional. Com as duas ações fazendo pressão, deveremos ter em breve o julgamento do pedido e o encaminhamento ao Congresso de uma mora constitucional, em que o Supremo cobra uma lei do Congresso ou ele mesmo passa a definir o tema.
 
Os dois pedidos foram de autoria do advogado e professor Paulo Iotti, que comemorou em seu perfil no Facebook esta semana a decisão. Com o pedido, o Supremo pode estabelecer que os crimes homofóbicos sejam incluídos na lei do racismo até que o Congresso defina uma legislação própria par ao tema, conceito fixado pelo STF no caso HC 82.424/RS,” que considerou o antissemitismo espécie do gênero racismo por tal motivo) ou, alternativamente, que o STF regulamente o tema, fixando os parâmetros em que a criminalização será feita” explicou o jurista.

Não há prazo para votação em plenário do pedido mas ele deve ser aprecisado no segundo semestre deste ano, depois do parecer do relator da ação ficar pronto.
 

“Não tenho palavras para expressar a felicidade de ver renovado o corajoso apoio da PGR às teses da ação. Sou o primeiro a dizer que são teses muito polêmicas (não obstante, a meu ver, absolutamente procedentes), de onde seria muito fácil ela opinar pela improcedência. Mas ela assumiu o ônus de externar sua concordância com a obrigatoriedade constitucional da criminalização específica da homotransfobia e a sua qualificação enquanto espécie de discriminação racial segundo o conceito constitucional de racismo enquanto racismo social. Trata-se de um importantíssimo apoio na tentativa de convencer o STF a também acolher as teses da ação”, comemorou o advogado.
 
“Ausência de resposta jurídica eficaz ao comando constitucional de combate à discriminação e ao preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais é intolerável em quadro social no qual centenas de indivíduos são mortos a cada ano primariamente por causa de sua orientação sexual”. Isso é o que defendo na ação, entendo que deve ser assim, mas é de uma polêmica ímpar no meio jurídico”, argumentou o advogado ao explicar a tese que pode criminalizar a homofobia no país.
 
Para o Procurador-Geral da República,  Rodrigo Janot Monteiro de Barros, “Condutas contrárias à liberdade de orientação sexual [e de identidade de gênero] possuem nítido caráter discriminatório e violador da dignidade do ser humano, em patente confronto com esse conjunto de normas constitucionais. A homofobia decorre da mesma intolerância que suscitou outros tipos de discriminação, como aqueles em razão de cor, procedência nacional, religião, etnia, classe e gênero”.

 

Confira o parecer da Procuradoria Geral da República:

 

 […] MANDADO DE CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA [E DA TRANSFOBIA]. CONFIGURAÇÃO DE RACISMO. LEI 7.716/1989. CONCEITO DE RAÇA. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO. MORA LEGISLATIVA. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA O CONGRESSO NACIONAL LEGISLAR.
 
[…]
 
2. Deve conferir-se interpretação conforme a Constituição ao conceito de raça previsto na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, a fim de que se reconheçam como crimes tipificados nessa lei comportamentos discriminatórios e preconceituosos contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros). Não se trata de analogia in malam partem.
3. O mandado de criminalização contido no art. 5º, XLII, da Constituição da República, abrange a criminalização de condutas homofóbicas e transfóbicas.
4. Caso não se entenda que a Lei 7.716/1989 tipifica práticas homofóbicas [e transfóbicas], está em mora inconstitucional o Congresso Nacional, por inobservância do art. 5º, XLI e XLII, da CR. Fixação de prazo para o Legislativo sanar a omissão legislativa.
 
[…]
 
6. A ausência de tutela judicial concernente à criminalização da homofobia e da transfobia mantém o estado atual de proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado e de desrespeito ao sistema constitucional.
7. Parecer pelo conhecimento parcial da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e, no mérito, pela procedência do pedido na parte conhecida.
 
[…]
 
Condutas contrárias à liberdade de orientação sexual [e de identidade de gênero] possuem nítido caráter discriminatório e violador da dignidade do ser humano, em patente confronto com esse conjunto de normas constitucionais. A homofobia decorre da mesma intolerância que suscitou outros tipos de discriminação, como aqueles em razão de cor, procedência nacional, religião, etnia, classe e gênero. Consoante explica DANIEL BORRILLO, a lógica perpetrada é a mesma, de inferiorização de certos grupos e indivíduos: 
 
[…]
 
Nessa perspectiva, a prática de racismo destacada no art. 5o , XLII, da CR, abrange atos homofóbicos e transfóbicos. De acordo com UADI LAMMÊGO BULOS, racismo é “todo e qualquer tratamento discriminador da condição humana em que o agente dilacera a autoestima e o patrimônio moral de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, tomando como critérios raça ou cor da pele, sexo, condi- ção econômica, origem etc.”.
Conforme destacou o Ministro MAURÍCIO CORRÊA, no julgamento do habeas corpus 82.424/RS, “limitar o racismo a simples discriminação de raças, considerado apenas o sentido léxico ou comum do termo, implica a própria negação do princípio da igualdade, abrindo-se a possibilidade de discussão sobre a limitação de direitos a determinada parcela da sociedade, o que põe em xeque a própria natureza e prevalência dos direitos humanos”.
Nesse contexto, em observância ao princípio da igualdade, os crimes previstos pela Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, abarcam as condutas homofóbicas, isto é, os atos de discriminação em virtude de orientação sexual, motivo por que o reconhecimento de sua inclusão naqueles tipos não ofende o princípio da legalidade em matéria penal. O conceito de raça sob o viés biológico é obsoleto, e deve sua interpretação ser conferida de acordo com o princípio da dignidade do ser humano e o Estado Democrático de Direito. Por sua vez, o Ministro CELSO DE MELLO destacou que “a noção de racismo – ao contrário do que equivocadamente sustentado na presente impetração – não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológico ou biológica, projetando-se, ao contrá- rio, numa dimensão abertamente cultural e sociológica, além de caracterizar, em sua abrangência conceitual, um indisfarçável instrumento de controle ideológico, de dominação política e de subjugação social”
 
[…]
 
A definição de raça e racismo é, em realidade, desenvolvida de acordo com o contexto histórico e varia conforme o tempo e o local; não depende necessariamente de similaridade física entre as pessoas que compõem o grupo racializado. Em outras palavras, o conceito de raça é fluido, de maneira que se tornam possíveis o surgimento de novos grupamentos considerados raças e o desaparecimento de outros grupos racializados.
 
Sobre o conceito histórico de raça, FABIANO SILVEIRA destaca que a determinação de um grupamento como raça prescinde de identidade biológica e, por outro lado, depende de “discurso racializante que permeia as relações intergrupais”. Segundo o autor, “esse discurso é construído historicamente por quem recebe o qualificativo racial, ou por quem o manipula exteriormente (ainda que manipulação sutil e constantemente negada, como no caso brasileiro), ou por ambos. Como quer que seja, o discurso racializante não se prende às dessemelhanças físicas entre grupos contrastados, podendo, inclusive, inventá-las artificialmente. Assim, as diferenças físicas e/ou culturais entre determinados grupos não criam, elas mesmas, a ideia de raça. Podem ser capturadas, no entanto, por um discurso cujo propósito é o de agudizar ao máximo tais diferenças e de fazer acreditar que elas existem em termos raciais – a tônica discursiva, com efeito, poderá recair ora sobre o elemento biológico, ora sobre o elemento cultural, mas, em maior ou menor intensidade, ambos tendem a combinar-se”.
 
Dessa maneira, considerando o conceito histórico de raça e, por consequência, de racismo, a homofobia e a transfobia, como comportamentos discriminatórios voltados à inferiorização do ser humano simplesmente pela orientação sexual, incluem-se entre os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça. É esse o correto entendimento de GUILHERME DE SOUZA NUCCI: “[…] Raça, enfim, um grupo de pessoas que comunga de ideais ou comportamentos comuns, ajuntando-se para defendê-los, sem que, necessariamente, constituam um homogêneo conjunto de pessoas fisicamente parecidas. Aliás, assim pensando, HOMOSSEXUAIS discriminados podem ser, para os fins de aplicação desta Lei, considerados como grupo racial. […] Nem se fale em utilização de analogia in malam partem. Não se está buscando, em um processo de equiparação por semelhança, considerar o ateu ou o HOMOSSEXUAL alguém parecido com o integrante de determinada raça. Ao contrário, está-se negando existir um conceito de raça, válido para definir qualquer agrupamento humano, de forma que racismo ou, se for preferível, a discriminação ou o preconceito de raça é somente uma manifestação de pensamento segregacionista, voltado a dividir os seres humanos, conforme qualquer critério leviano e arbitrariamente eleito, em castas, privilegiando umas em detrimento de outras. […] Logo, ser ateu, HOMOSSEXUAL, pobre, ENTRE OUTROS FATORES, também pode ser elemento de valoração razoável para evidenciar a busca de um grupo hegemônico qualquer de extirpar da convivência social indiví- duos indesejáveis. Não se pode considerar racismo atacar judeus, unicamente por conta de lamentáveis fatos históricos, como o holocausto, mas, sobretudo, porque todos são seres humanos e raça é conceito enigmático e ambíguo, merecedor, pois, de uma interpretação segundo os preceitos da igualdade, apregoada pela Constituição Federal, em função do Estado Democrático de Direito” [destaques meus/Paulo Iotti]
 
[…]
 
Portanto, não se trata de defender tipificação por meio de analogia in malam partem, mas de interpretação conforme a Constituição do conceito de raça, para adequá-lo à realidade brasileira atual, em processo de mutação de conceitos jurídicos – o que é plenamente compatível com o conteúdo histórico da noção de “racismo”.
 
Dados do Relatório Sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que abrangem apenas violações relatadas, revelam a gravidade e a amplitude dos atos discriminatórios praticados contra a população LGBT:
 
[…]
 
Interpretação atualizada da Constituição da República, calcada nos princípios da igualdade e da dignidade do ser humano, evidencia que a Lei 7.716/1989 abrange atos discriminatórios e preconceituosos praticados motivados por orientação sexual e/ou identidade de gênero.
 
[…]
 
A necessária criminalização da homofobia e da transfobia não foi deixada à discricionariedade política do legislador pela Constituição da República de 1988, a qual dispôs expressamente a respeito da punição de qualquer discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais, no art. 5º, XLI, e, logo em seguida, determinou tratamento penal específico para a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII). É verdade que, em ambos os dispositivos, atribui à lei a respectiva disciplina, mas não é menos verdade que a Constituição estabeleceu dever específico de legislar para proteger tal valor constitucional. A esse propósito, calha a afirmação de LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES: “O reconhecimento dos deveres de proteção penal aos direitos fundamentais faz o bem jurídico funcionar como limite mínimo, aquém do qual não se podem situar as sanções penais, sob o risco de proteger insuficientemente aqueles direitos”.
 
O texto constitucional, que se refere claramente à punição e ao tratamento penal, não se satisfaz com “legislação não criminal punitiva [que] não tem se mostrado apta a coibir a homofobia e a transfobia”, como aduz o requerente. O art. 5º, XLII, consubstancia mandado de criminalização, ao qual o Legislativo se encontra vinculado, de maneira que não está sob sua discricionariedade criminalizar ou não práticas racistas. O bem jurídico a ser protegido foi determinado pela Constituição da República e deve ser protegido pela atuação legislativa.
 
Nesse contexto, razões de equivalência constitucional, ancoradas no princípio da igualdade, impõem criminalização da discriminação e do preconceito contra cidadãos e cidadãs lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, pois a repressão penal da discriminação e do preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional já é prevista pela legislação criminal brasileira (Lei 7.716/1989) e não há justificativa para tratamento jurídico diverso, sob pena de intolerável hierarquização de opressões. No elegante dizer do Ministro ROBERTO BARROSO: “É preciso avançar no processo civilizatório”.
 
A determinação de editar normas penais para combater homofobia e transfobia é, por outro lado, compromisso internacional. Citem-se alguns documentos pertinentes:
 
[…]
 
As normas criminais existentes, que punem de forma genérica homicídio, lesões corporais e injúria, são notoriamente insuficientes para prevenir e reprimir atos de homofobia e transfobia, os quais se qualificam pelo desprezo oriundo de preconceito. Segundo afirma a petição inicial, “crimes de ódio são socialmente mais graves do que crimes praticados sem motivação de ódio contra as vítimas por conta do alto grau de intolerância”. Por outro lado, a Constituição (art. 5º, XLI e XLII) e a legislação criminal brasileira (na Lei 7.716/1989) reconhecem explicitamente que preconceito e discriminação são fatores de justificação para resposta penal específica.
 
Proteção insuficiente é notória hipótese caracterizadora de inconstitucionalidade por omissão. Trata-se da versão “negativa” da proporcionalidade, conforme esclarece PAULO GILBERTO C. LEIVAS: “A proibição da não suficiência exige que o legislador [e também o administrador], se está obrigado a uma ação, não deixe de alcançar limites mínimos. O Estado, portanto, é limitado de um lado, por meio dos limites superiores da proibição do excesso, e de outro, por meio de limites inferiores da proibição da não suficiência”.
 
O importante argumento da reserva absoluta de lei (princípio da legalidade estrita) em matéria penal precisa ser interpretado à luz da supremacia da Constituição, das determinações específicas de legislar para proteger a dignidade, do controle de constitucionalidade, da previsão de mecanismos processuais talhados para enfrentamento da omissão inconstitucional (como o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão) e do papel do Supremo Tribunal Federal na concretização constitucional. Ausência de resposta jurídica eficaz ao comando constitucional de combate à discriminação e ao preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais é intolerável em quadro social no qual centenas de indivíduos são mortos a cada ano primariamente por causa de sua orientação sexual.
 
Caso se entenda que atos discriminatórios contra homossexuais não foram criminalizados pela Lei 7.716/1989, deve-se reconhecer ausência de norma regulamentadora que inviabiliza o exercício da liberdade constitucional de orientação sexual e de identidade de gênero bem como da liberdade de expressão, sem as quais fica inapelavelmente comprometido o livre desenvolvimento da personalidade, em atentado à dignidade do ser humano, que é fundamento do Estado democrático de Direito em que se erige a República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da Constituição).
 
A discriminação e o preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais atingem especialmente determinadas pessoas e grupos, o que macula o princípio da igualdade e acarreta situação especial de grave vulnerabilidade física, psíquica e social, em violação ao direito à segurança, importantes prerrogativas da cidadania. Aduza-se componente democrático, dado pelo paradigma do pluralismo, que – segundo ÁLVARO RICARDO SOUZA CRUZ – “tem por pressuposto a admissão de respeito e proteção a projetos de vida distintos daqueles considerados como padrão pela maioria da sociedade”.
 
Deve ser julgado procedente o pedido de reconhecimento de mora do Congresso Nacional em editar diploma legal voltado à criminalização de práticas homofóbicas e transfóbicas. Após mais de treze anos de tramitação, o projeto de lei (PL) 5.003, de 7 de agosto de 2001, aprovado originariamente na Câ- mara dos Deputados e que se convolou no projeto de lei 122, de 12 de dezembro de 2006, do Senado Federal, foi apensado ao PL 236, de 9 de julho de 2012 (novo Código Penal), também do Senado e arquivado em 26 de dezembro de 2015.27 Entretanto, na proposta original do PL 236/2012, previa-se criminalização da homofobia em capítulo destinado ao racismo e a crimes resultantes de preconceito e discriminação (arts. 472 e seguintes). É relevante que o Supremo Tribunal Federal intervenha para acelerar o processo de produção normativa e conferir concretização aos comandos constitucionais de punição de qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) e da prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII), os quais geram claramente dever específico de legislar.
 
Encontra-se definitivamente superado o entendimento de que a existência de proposta legislativa em discussão no Congresso Nacional constitui óbice à ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A inércia daquela instituição deve ser avaliada não só quanto à inauguração do processo de elaboração das leis, mas também no que tange à deliberação sobre processo legislativo já instaurado (inertia deliberandi), “porquanto só conferem exequibilidade a normas constitucionais medidas legislativas actuais e não futuras ou potenciais”. O próprio Supremo Tribunal já admitiu configurar-se inércia do legislador – portanto, omissão inconstitucional – mesmo quando já tenha atuado, ao propor projeto de lei ou dar início à sua tramitação. No julgamento da ADI 3.682/MT, cujo objeto consistiu na omissão do legislador em elaborar a lei complementar prevista no art. 18, § 4 o , da Constituição da República, reconheceu como omissão inconstitucional a demora na deliberação e aprovação do diploma legal:
 
[…]
 
Tal ocorre em casos, como o destes autos, em que o processo legislativo se procrastina há tanto tempo que o efeito prático é o mesmo daqueles em que inexiste projeto de lei: ausência de regulamentação legislativa para direito constitucionalmente assegurado ou para outra matéria dela pendente.
 
No caso, o projeto de lei sobre criminalização de condutas atentatórias à liberdade de orientação sexual já ultrapassou qualquer lapso aceitável de tramitação, de modo que se caracteriza mora legislativa inconstitucional. Relembre-se que a Constituição impôs o dever de regulamentar a matéria há mais de um quarto de século.
 
Dado o entendimento recente da Suprema Corte brasileira no que se refere às omissões inconstitucionais, é cabível estabelecer prazo razoável, à luz dos parâmetros acima, para que o Congresso Nacional conclua a deliberação acerca das leis apropriadas. Na hipótese de o prazo estipulado pelo Supremo Tribunal Federal não ser observado, a omissão legislativa poderá ser suprida normativamente pela própria Corte, consoante propôs FLÁVIA PIOVESAN: ‘A título de proposição, sustenta-se que mais conveniente e eficaz seria se o Supremo Tribunal Federal declarasse inconstitucional a omissão e fixasse prazo para que o legislador omisso suprisse a omissão inconstitucional, no sentido de conferir efetividade à norma constitucional. O prazo poderia corresponder ao prazo da apreciação em ‘regime de urgência’, que, nos termos do art. 64, § 2º, do texto, é de quarenta e cinco dias. Pois bem, finalizado o prazo, sem qualquer providência adotada, poderia o próprio Supremo, a depender do caso, dispor normativamente da matéria, a título provisório, até que o legislador viesse a elaborar a norma faltante. Esta decisão normativa do Supremo Tribunal Federal, de caráter temporário, viabilizaria, desde logo, a concretização de preceito constitucional. Estariam então conciliados o princí- pio político da autonomia do legislador e a exigência do efetivo cumprimento das normas constitucionais”.
 
Nesse sentido, será possível acolher o pedido de aplicação da Lei 7.716/1989 para todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente), ofensas (individuais e coletivas), homicídios, agressões, ameaças e discriminações motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima. Tal pedido repousa na técnica de interpretação conforme a Constituição, em que o Supremo Tribunal Federal poderá adotar decisão de perfil moderadamente aditivo a partir da legislação existente. Ao tempo em que se respeita a vontade manifesta do Poder Legislativo, externada em lei vigente por ele criada, concede-se interpretação extensiva, sintonizada à realidade social. A propósito, está expresso na redação do art. 10 da Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999 (sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental) que o Tribunal pode, no momento da decisão, fixar “as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental”, regime que é perfeitamente cabível para processos decisórios em questões de constitucionalidade de modo geral. Essa Corte tem adotado decisões intermédias manipulativas), nas quais interpreta textos legislativos e confere maior ou menor extensão à literalidade, de que são exemplos significativos, no âmbito civil, a contemplação das uniões homoafetivas no art. 1.723 do Código Civil (ADI 4.277/DF, relator Ministro AYRES BRITTO, julgada em 5 de maio de 2011)36 e, na órbita criminal, a exclusão, do art. 287 do Código Penal (apologia de crime ou criminoso), de “qualquer exegese que possa ensejar a criminaliza- ção da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos” (ADPF 187/DF, relator Ministro CELSO DE MELLO, julgada em 15 de junho de 2011).
 
Por fim, pode ser acolhido o pedido maior da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, para que o próprio Supremo Tribunal Federal proceda à regulamentação dos dispositivos constitucionais invocados como carentes de interposição legislativa, enquanto não sobrevier edição de lei específica pelo Congresso Nacional. A possibilidade de construção normativa no controle de constitucionalidade é reconhecida no quadro atual da jurisdição constitucional e expressamente oferecida na Constituição brasileira por meio do mandado de injunção. Haverá a maior extensão possível aos efeitos do instituto, no sentido do que se convencionou designar por posição concretista geral. Importará então adotar parâmetros para atuação normativa concretizadora do Supremo Tribunal Federal. Seria o caso, por exemplo, de utilizar desde logo o conteúdo do projeto de lei 122/2006 ou dos dispositivos do projeto de Código Penal do Senado (que prevê, no art. 487, o racismo e os crimes resultantes de preconceito e discriminação, “quando praticado por motivo de discriminação ou preconceito de gênero, raça, cor, etnia, identidade ou orientação sexual, religião, procedência regional ou nacional ou por outro motivo assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância”, com pena de prisão de um a cinco anos). Ressalte-se, ainda uma vez, que nenhuma dessas soluções é a mais apropriada e a mais compatível com o sistema jurídico tradicional, mas todas elas se impõem como alternativas, diante do comportamento do Congresso Nacional, que não deu concretização, há mais de duas décadas e meia, a comando constitucional expresso.
IV CONCLUSÃO
Ante o exposto, o parecer é pelo conhecimento parcial da ação direta e, no mérito, pela procedência do pedido.
 
Brasília (DF), 15 de junho de 2015.
 
Rodrigo Janot Monteiro de Barros
Procurador-Geral da República

 

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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