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A conversão das igrejas à homossexualidade

Arthur Virmond de Lacerta Neto 09 de Setembro, 2015 12h59m

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Não obstante a teologia cristã haja sido persistentemente homofóbica nos últimos oito séculos, observa-se, nos últimos anos, o surgimento de algumas igrejas ditas “inclusivas”, ou seja, acolhedoras, sem discriminações, dos homossexuais (masculinos e femininos).
 
Devido à liberdade, no protestantismo, de interpretação das escrituras, de ministério e de fundação de novas igrejas, com denominação própria e doutrina específica, há, no ambiente acatólico, espaço para teologias pró-homossexualidade, como se confirma na Holanda e mesmo em algumas seitas, no Brasil, como manifestações de guinada na posição de alguns setores do cristianismo perante a homossexualidade.
 
Mesmo o catolicismo, que uniformiza a exegese e, com ela, a doutrina, é passível de reformulações conceituais.
 
Duas igrejas sobressaem-se na inovação: a católica, cujo cabeça, o papa Francisco, declarou, em 2013, sob forma interrogativa “Quem sou eu para julgar os gays ?”, que vem tomando atitudes de simpatia em relação ao público não heterossexual e cujos bispos aprovaram, em 2015, documento em que ela exprime a sua receptividade aos homossexuais (malgrado perseverem na censura dos atos de homossexualidade).
 
Também a igreja Universal do Reino de Deus, do brasileiro Edir Macedo, cambiou de modo: segundo declaração sua (em agosto de 2015), Cristo nada proferiu antagonicamente aos homossexuais nem à homossexualidade; a sua igreja não tenciona transformar os homossexuais em heterossexuais; a homossexualidade, conquanto pecado, o é de gravidade equivalente aos da gula e da preguiça, vale dizer, pecadilhos.
 
Ambas igrejas, católica e Universal, exercem influência nos comportamentos e nas mentalidades. Enquanto, no ocidente em geral, as classes médias e instruídas dissociam-se do sobrenatural (o avanço da descrença e do ateísmo são realidades que se confirmam sobretudo na geração sub-30), no Brasil, as classes social e culturalmente inferiores professam, abundantemente, o cristianismo nas suas modalidades mais toscas, das quais a igreja Universal destaca-se pelo sincretismo com formas judaicas e pela sua riqueza extraordinária, apesar da pobreza do seu público, que a enriquece graças ao dízimo.
 
Como entender a nova doutrina das igrejas?
 
Antes de mais, ela não deve surpreender. Não é a primeira vez em que a doutrina cristã (católica ou protestante) cambiou, nem será a derradeira: mudar, por matizes discretos ou abruptamente, pertence à própria natureza da teologia, cujo conteúdo supostamente revelado permite “modificar, corrigir ou ampliar o conjunto de enunciados que lhe constituem o objeto, em função de circunstâncias contingentes e cambiantes” (OJEA, G.P. Elogio del ateísmo. Madri, 1995, p. 174).

Graças à manipulação dos textos bíblicos, as igrejas alteram-lhe a exegese “em função das necessidades doutrinárias ou práticas de cada momento” (idem, p. 175), capazes de “conduzir a um maior ou menor grau de inovação ou alteração da fé original” (idem, idem), com “grande capacidade de incorporação ou metabolização de elementos forâneos ou externos ao credo revelado inicialmente” (idem, idem). As igrejas metamorfoseiam-se por “deslocamento de ênfase, dentro dos enunciados originais, em favor de certos elementos e em prejuízo de outros” (idem, idem).
 

O cristianismo executa manobras conceituais que lhe permitem criar doutrina e, estrategicamente, modificá-la para adaptar-se ao estado mental e às preferências das populações, quando lhe convém.
 
É o caso: por séculos, CERTAS igrejas increparam a homossexualidade e verberaram-na como abominação; a sua pregação foi, contudo, incapaz de manter a homofobia e de conter a crescente aceitação da homossexualidade no ocidente. Os valores que já se entranharam na parcela esclarecida das sociedades ocidentais (e que, tendencialmente, manter-se-ão nas próximas gerações) discrepam, irreversivelmente, dos apregoados pela dogmática cristã tradicional: na impossibilidade de manter a sujeição mental anti-homossexual dos seus fiéis, CERTAS igrejas estão passando a conformar os seus dogmas à mentalidade em avanço.
 
Quanto ao papa, a nova atitude talvez seja sincera; em relação a Edir Macedo, ela resulta, também da condição homossexual de algum parente seu (segundo informe não confirmado nem desmentido) e do interesse de embolsar o dízimo dos homossexuais que a sua aceitação cooptará. No caso de ambos, a inovação é também estratégica e destina-se a manter o seu público e a ampliá-lo, na medida em que elas se tornem porta-vozes das preferências em voga.
 
Francisco e Edir perceberam a nova forma mental crescente, em favor da inclusão social dos homossexuais. Compreenderam a inutilidade de contrariá-la e a vantagem de aderir-lhe: ao invés de as suas organizações oporem-se aos novos tempos, associam-se ao que eles portam para, adesos às novidades, sobreviverem, o que é especialmente importante para o catolicismo na Europa já ex-cristã ou pós-cristã. 
 
Se, por séculos, enfatizaram-se o Levítico (18:22), o “pecado” de Sodoma (Gênesis, 19: 1-11), a carta de Paulo de Tarso aos romanos (18-32), doravante, tais passagens sofrerão reinterpretações (à exemplo da hermenêutica inocentadora do padre Daniel Helminiak ) ou o deslocamento de ênfase (a que se refere Gonçalo Puente Ojea) em grau acentuado ou mesmo total, pelo seu esquecimento ou mercê da sua subalternização a passagens explícitas ou interpretadas, de amor ao próximo, de caridade, de fraternidade, de recusa da acepção de pessoas e afins, que passarão a ser aplicadas aos uranistas.
 
Qualquer interpretação vale e todo argumento usa-se, desde que convirja no sentido desejado e ainda que contradiga a predicação anterior. As antinomias não inibem a teologia; ao contrário, a Bíblia contêm-nas inúmeras, e ainda que não as contivesse, a exegese, por sentido metafórico, permite todas as acomodações. 
 
Evocar-se-ão a relação ternurenta entre Jesus e João, a ligação explicitamente homoafetiva de Jônatas e Davi (Samuel, 18: 4-5), a provavelmente lésbica de Rute e Noemi (Rute, 1: 16-17); sobremodo o silêncio de Cristo em relação à homossexualidade e, portanto, a ausência de censura a ela. 
 
Alguém, mais informado ou mais engenhoso, lembrar-se-á de enfatizar a nova teologia com a gravura tradicionalmente empregada para representar Jesus (jovem, de rosto triangular, castanho claro, barbacena e veloso): da autoria de Miguel Angelo, ela retrata-lhe o amante, Tomás Cavalieri. Por séculos a fio, os católicos vem venerando o seu herói pela imagem de um fanchono, pintada por outro. 
 
Fora eu o padre ou pastor e predicaria, com embevecimento e convicção, que “nada acontece por acaso” e que deus, na sua infinda sabedoria, representou o “Senhor Jesus” na figura de um homossexual, para mostrar às suas ovelhas o caminho da aceitação dos irmãos homossexuais, para ensinar-lhes que o espírito vivifica e a letra mata, que a regra suprema consiste em amar ao próximo etc…
 
Especial cuidado merecerão o adjetivo “abominação”, com que o Levítico tacha a homossexualidade, e o trecho respectivo: serão reinterpretados para transformar o dantes abominável emagora aceitável, pelo esclarecimento de que “abominação” não significa “abominação” ou se sim, significa-o tanto quanto o uso de trajes compostos por dois tipos diferentes de fios ou alimentar-se de frutos do mar, práticas que ninguém ousaria abominar. 
 
Se a Bíblia não distingue graus de abominação e reputa abominável o que não nos é, razão nenhuma existe porque os cristãos abominem a homossexualidade, interpretação, aliás, presente no argumentário pró-liberdade homossexual anterior à revisão doutrinária de certas igrejas.
 
Contudo, sequer é preciso chegar-se aos exercícios hermenêuticos: basta omitirem-se as passagens inconvenientes e insistir-se nas convenientes. Afinal, com a Bíblia prova-se qualquer asserção e o seu contrário, demonstra-se qualquer tese e qualquer antítese ou ambas em simultâneo.
 
É expectável que, a médio ou longo prazo, as igrejas incluidoras e as que venham a tornar-se tal, cogitem, especulativamente, da homossexualidade do próprio Cristo, ou afirmem-na, à exemplo, aliás, das considerações neste sentido encontradiças na própria igreja católica antes do século 13, período em que houve mesmo gérmen de teologia homossexual (BOSWELL, J. Cristianesimo, tolleranza, omosessualitá. Editora Leonardo, Milão, 1989, p. 271, 201). Demais, o bando de Cristo era exclusivamente masculino, o que suscita, quando menos, a suspeita da sua preferência por homens.
 
Segundo Edir Macedo (em setembro de 2015), “A Universal está 100% de acordo com a Bíblia, o que significa que considera que homossexualismo não é maior ou menor que qualquer outro pecado. Tanto o Velho quanto o Novo Testamento condenam essas práticas. Entretanto, o Senhor Jesus não veio para condenar, mas para salvar. Cremos que o Senhor Jesus deu um excelente exemplo de mensagem para todos os pecadores: não incriminou ninguém, exceto os religiosos hipócritas”.
 
Até 2012, contudo, o mesmo Edir Macedo praticava rituais de exorcismo de homossexuais, em que, teatral e grotescamente (bem ao gosto deste tipo de pregador), vozeando expressões imperativas ao demônio, esforçava-se por livrar os seus fiéis da homossexualidade.
 
Antes, a homossexualidade resultava da possessão demoníaca; agora, o “Senhor Jesus” não a incriminou.
 
Servem tais declarações como exemplo da capacidade do cristianismo de modificar o seu discurso. Grande camaleão da civilização ocidental, ele condiciona os valores, as mentalidades e os comportamentos, porém sabe reconhecer a sua impotência para modificá-los, quando é o caso: impotente para mudá-los, muda ele.  Não há verdades cristãs absolutas e definitivas; inexiste um cristianismo legítimo, verdadeiro, “o” cristianismo, porém existem as distintas fórmulas doutrinárias porque ele se apresenta ao longo dos tempos, como verdades movediças, relativas e que as igrejas concebem e reformam, talvez sinceramente, todavia também como estratégia proselitista de dizer ao seu público o que ele aceita escutar para, graças a isto, falarem-lhe o que elas desejam dizer-lhe, manterem e ampliarem a sua audiência e as suas receitas.
 
As verdades cristãs e a vontade do seu deus são versáteis assim como o são os homossexuais versáteis: ora de um lado, ora de outro, conforme a ocasião.
 
Nota do autor: grafo deus e jamais Deus, porquanto as maiúsculas iniciais usam-se em nomes próprios, o que não é o caso desta palavra: deus designa o tipo de ser, não o nomina. Nomes de deuses são, por exemplo, Hermes, Apolo, Baco; os deuses cristãos chamam-se Iavé, Eloim, Jesus, Espírito Santo. Estes são os seus nomes; “deus” não é nome.

Arthur Virmond de Lacerda Neto é professor universitário, filósofo, advogado e colunista da Lado A.
 

Arthur Virmond de Lacerta Neto

SOBRE O AUTOR

Arthur Virmond de Lacerta Neto

Arthur Virmond de Lacerda Neto é jurista, filósofo, advogado, professor e escritor de sucesso. Nascido em Portugal, ele reside atualmente em Curitiba, e é colunista da Lado A desde 2007.

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