Arquivo

Eu beijei uma mulher

Redação Lado A 28 de Janeiro, 2016 13h37m

COMPARTILHAR

TAGS


A enunciação de uma sentença tem um poder deliberativo sobre uma ação performativa. “Eu sou gay!”… e isto desencadeia um conjunto de assimilações. Não posso sair desta esteira por onde caminho. E se declaro algo contraditório a este corpo de simbologias, eu perco minha essência.

Judith Butler é mestre nestes processos de análise da linguagem e da ação na sua filosofia Queer. Para ela, os atos da fala limitam os contornos dos sujeitos, as possíveis negociações e ações. Não posso ser contraditado por uma autodeclararão. Mas, ao mesmo tempo, este corpo que fala está sujeito a deslizamentos da categoria, possibilitando novos ajustes e pequenas fissuras ao original. Enfim, o corpo não é um todo já pronto. Obviamente, estamos nos campos das teorias, em que se pensa e repensa esse fazer do gênero na repetição e no deslocamento.

Mas seríamos tanto estáveis quanto pensamos ser, ao ponto de nunca nos contradizermos ou reavaliar nossas declarações?

Ao longo do processo formativo (ou performativo) de minha homossexualidade, sempre me identifiquei com o modelo de um gay assumidamente alocado neste quadradinho performático, cheio de regras citacionais e comportamentais. Esse padrão me impedia peremptoriamente de ficar com mulheres. Um jogo cênico e de linguagem é proibido neste sentido da minha atuação como gay, os espaços são definidos, moda, enfim, há toda uma logística homossocial. Não é?

Por esta razão, é importante analisar o que se produz na filosofia a respeito de nossas ações dentro deste campo do gênero. Fala-se de um devir, de uma fluidez e de uma palavra que estou começando a namorar: negociação. Será que durante toda a nossa existência este fazer (perform) dos nossos corpos devem permanecer intactos em nome de uma essencialidade ontológica? Ricky Martin não pode ficar com mulheres? Homem heterossexual não pode ficar com um outro cis ou gay? Embora eu reflita sobre a necessidade de afirmação dos direitos – no que diz respeito à igualdade de tratamento e de condições – onde está o limite de nossas performações como sujeitos homoafetivos? É uma condição perene? A autoafirmação é inalterável? A quebra temporária deste juramento linguístico implica numa mudança histórica do seu próprio ser?

Confesso que ando meio reflexivo diante destes aspectos, sabendo que a decisão para alcançar os sabores das fissuras que vou autorizando acontecer em mim, são ligeiramente possíveis. Embora eu ainda não saiba o que quer dizer isso, vez que tenho por muito tempo pensado dentro da caixinha. Há muito ainda para ser feito pela luta da causa LGBT no sentido de garantia de políticas públicas para estes sujeitos que agem em completamente cônscios de suas negociações dentro do conjunto social. O amor homossexual ainda é algo a ser estudado, justamente por quebrar com os paradigmas de uma heterossexualidade compulsória. E a militância neste sentido é algo necessário para os corpos que ainda estão no seu processo rumo ao devir.

Mas no mundo das ideias e das filosofias que nos fazem refletir, fico me indagando de uns anos pra cá, qual seria meu papel neste processo. Seria continuar reproduzindo estes papeis assumidos durante este tempo todo sem repensá-lo ou ressignificá-lo? E outra, eu preciso fazer isso?

Como agir à performação, mais do que comum hoje em dia, de homens que se autodeclaram heterossexuais e que ficam com outros homens? Como isso repercute no meu processo formador de minha homossexualidade? Como me preparar para mudanças de um paradigma que aceitei e internalizei? Como será o gay daqui pra frente?

E quando digo que eventualmente: eu beijarei uma mulher, o desejo interfere neste processo? Ou a linguagem pode ser descontruída de seu poder ao ponto de garantir uma potencialidade de mudança entre o discurso e o ato?
Confesso que ando lendo muito Judith Butler e suas provocações causam mais dúvidas do que conformações no pensamento que anda meio endurecido pelo padrão que escolhi e aprendi com ele a conviver.

Roberto Muniz Dias é piauiense, mora em Brasília, considerado hoje um dos maiores autores da Literatura GLS brasileira. 

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

COMPARTILHAR

TAGS


COMENTÁRIOS