Por Miguel Pesch T. (Conto publicado na XVIII Coletânia de Autores Contemporâneos da Câmara Brasileira de Jovens Escritores)
Amêndoa caiu da árvore. Ela nem ouviu. O barulho do balanço camuflou o som. Pensativa, impulsiona: pra frente, pra trás. O pé-de-sombreiro faz sombras no rosto, pegando sol somente nos pezinhos. O sol pega, o sol não pega, e o mundo balança.
Tanta correria, gritaria, e passam os carros com seus nervosos motoristas. Isabel não os vê, ouve somente o vrum do motor. Sinaleiro pisca, os carros param; pisca de novo, carros andam. E a rua balança.
Seus cachinhos acastanhados cobrem o rosto moreno-oliva. Os olhinhos, não tão pequenos assim, como a fruta que caiu, no seu tom caramelado, corre o gramado e segue até a próxima sombra: outra árvore.
Nenhum balanço pendurado em seus galhos. Enormes galhos: sem flores, nem frutos. Flamboyant gigante: será que alguém já subiu lá em cima? E as folhinhas caem como os pingos da chuva que se soltam das nuvens.
As crianças da rua estudam, Isabel ainda não tem idade para estudar.
A duas casas dali, a mãe olha pelo vidro, “Cadê essa menina?”. Vendo os cachinhos balançando, volta para o seu tanque cheio de vestidinhos e meias brancas, mas não menos sujas.
O sol tão cinza esquenta os pezinhos que se soltam no ar. Pé vem pra baixo; pé vai pra cima.Desde cedo a mãe ensina-lhe as cores:
“Esse vestido é rosa, Isabel.”
“Como esse lápis?”
“Não.”
“Como essa blusinha?”
“Não.”
“E essa balinha?”
“Também não.”
Enfia de uma vez na boca antes que seja negada, também. “Essa menina é um gênio”, diz a amiga da mãe que vê o desenho de Isabel, pendurado na porta da geladeira. “Como pode desenhar tão bem assim? E só tem cinco anos. Quando chegar na escola, ensinará a professora a desenhar. Tão abstrato, mas tão profundo!”
Isabel sorri, maroto e desinteressado sorriso. “Olha, tia, pra você”, diz escondendo o rosto nas mãos. “Nossa! Antes de ir à escola, ponha na aula de pintura, essa menina vai longe”, diz a tia para a mãe coruja. Não entende se é um barco á deriva ou uma estrela perdida no céu.
No seu balançar cotidiano, vê as crianças brincando, crianças rodando, crianças pulando, crianças gritando, crianças. O mundo de Isabel é um imenso degrade de cores esquecidas na paleta de tintas. Seus desenhos: um prisma colorido, transformado em algo parecido com uma árvore; outro é um carro, que é fácil identificar que passou, pois as linhas do vento seguem-no. Mas tudo realmente não combina. Somente a intensidade, da mais forte para a mais fraca, digna de pintor: artista.
Mãe pega na mãozinha, capa de chuva rosinha e leva, enfim, para a aula de pintura.
Primeiro exercício:
“Façam um arco-íris, crianças.”
“O que é isso professora”, pergunta Isabel. Risos abafados por pequenas mãos.
“Você não sabe, Isabel?”
“Não.”
“Mostre para ela, Pedrinho!”
“Uma curva cheia de listras, que troço mais feio”, pensa e não diz, com medo de magoar os sentimentos do coleguinha. E ela fez igualmente ao Pedrinho, sem uma forma definida.
“Que lindo!”, diz a professora, logo esquecendo do desenho, e da aluninha.
Chegando em casa, pergunta à mãe o que é arco-íris, onde tem.Tão sem graça o que mostraram na escolinha.
“Espera um pouco que a chuva já passa e te mostro, filha.”
Fica na janela, olhando a água escorrer no vidro, caindo no parapeito e escoando pela parede. Chuva forte; chuva fraca; chuva pára. Uma réstia de sol aparece por entre as nuvens, mostrando a tão esperada curva listrada.
“Mãe, onde tá, não tô vendo?”
“Vamos lá fora, dá pra ver melhor.”
Chegando no gramado, a mãe aponta para o arco colorido, tão prismático quanto os desenhos da filha.E ela que pensou que Isabel conhecesse tudo de cores, mas nunca tinha visto um arco-íris.
Corre para casa e desenha o mais lindo desenho da sua pouca vidinha. Corre para mostrar para a mãe. Desenho apreciado e colado na geladeira.
“Não mãe, não cola não. Vô levá pra tia vê.”
No dia seguinte, na escolinha, mostra toda empolgada para a professora.
“Olha, tia, o arco… como é mesmo que fala?”
“Arco-íris. Que lindo, mas a mamãe ajudou, não foi?”
“Ajudou sim. Ela me mostrou o que é esse troço”, diz enraivecida. Pega o desenho, dobra e guarda na bolsinha. Não quer mais fazer aulinha.
Enquanto as crianças correm e comem, Isabel se esconde entre os pilares da escolinha. Ninguém está por perto, corre portão a fora. Na rua, chora. Enxuga as lágrimas com a manga do casaco e segue rua acima.
No primeiro sinaleiro, ela olha para as pessoas. Ele pisca, e elas seguem. Isabel segue junto. No próximo, não tem ninguém na rua. Olha para o sinaleiro, ele pisca, ela segue. Carro vem em sua direção, não conseguindo desviar. Ouve-se gritinho abafado, como soluço depois do refrigerante, e cachinhos soltos no ar. O mundo balança, como no pé-de-sombreiro. As cores misturadas, como nos seus desenhos abstratos, tão bonitos colados na porta da geladeira. A mesma gritaria, com motoristas nervosos. Não ouve mais nenhum vrum de motor.
Agora não vê mais tão cinza. Agora corre em cima de uma estrada colorida, que na verdade é uma ponte, sem corrimão: uma curva listrada. Porém essa é toda enfeitada, e transforma-se em escorregador. Lá no final, cai em um pote dourado; talvez seu tesouro.
Hoje, ao fechar a geladeira, mãe jorra lágrimas só de ver os desenhos, tão bem pintados, tão coloridos, na cinzenta cozinha, sem cor, nem tom. Só falta o arco-íris. Ficou na rua, chuva molhou. Perderam-se as cores, ficaram no chão.