Lançado durante a Semana da diversidade, que aconteceu no começo desse mês, o livro “Me Aceite”, escrito por Flávia Schüler, é baseado em experiências de vida da escritora e relatos de amigos, tratando de forma romanceada e ficcional a questão da homoafetividade na infância. A obra aborda a relação entre pais e filhos que descobrem a homossexualidade, além de sugerir caminhos para a construção de uma convivência familiar feliz.
Vinda de uma família pobre e sem ter tido condições de estudar, Flávia faz de suas experiências pessoais a principal ferramenta ao falar com o leitor.
Me conte um pouco sobre você e sua história
Nasci no Rio Grande do Sul e venho de uma família pobre. Meu pai abandonou a família quando eu tinha apenas quatro anos. Ele era mecânico e dizia que filha mulher não precisava estudar pois o marido é quem deveria sustentá-la. Minha mãe, dona Édie, se viu sozinha, com duas filhas pequenas, sem nenhum amparo financeiro e sem emprego. Passamos por muitas privações até que um tio meu, que distribuía jornal, ofereceu trabalho à ela. Minha mãe pagava os jornais e colocava um pouco em uma tira de pano, atravessada em meu pescoço, e eu saía vendendo. Isso com seis anos de idade. Depois que acabavam os jornais, eu pegava uma caixinha e ia engraxar sapatos. Esta rotina foi até aos oito anos.
Desde cedo me esforcei para aprender a ler, pois a leitura me encantava. Aprendi o som das letras e comecei a soletrar, porque eu queria saber o que estava escrito nos quadrinhos dos gibis. Logo as leituras infantis já não me bastavam e passei a ler a revista Seleções. Quando eu estava com dez anos surgiu a revista Intimidade, dicionário enciclopédico de orientação sexual. Eu comecei a trabalhar dobrado para sobrar dinheiro e comprar a revista. Lembro que depois que eu acabava de engraxar sapatos na Praça da Alfândega, arrumava tempo para palestrar sobre sexo e corpo humano para as outras crianças que também trabalhavam por ali. Por vezes, até adultos paravam, de boca aberta, ouvindo as minhas explicações e eu, com a maior naturalidade, repassava os conhecimentos adquiridos na minha enciclopédia.
Aos onze anos conheci o meu primeiro namorado. Aos doze fiquei noiva e aos treze me casei. Com quatorze tive a minha primeira filha e com dezessete tive o segundo. Aos dezenove me separei. Não estudei e tive que trabalhar para sobreviver.
Me casei de novo, com o Walter, que terminou de criar os meus filhos do primeiro casamento e com ele tive mais três filhos maravilhosos. Pelo meu segundo marido eu fui incentivada a estudar, mas o máximo que consegui, foi chegar até a quinta série e acabei desistindo. Eu achava que, mais importante do que estudar, era estar com meus filho.
Qual seu envolvimento com o meio GLS?
Sempre tive um jeito bem especial de entender as pessoas, e por meio de um sobrinho homossexual, que costumava dizer que eu era a sua verdadeira mãe, comecei a ter contato com outros jovens homoafetivos. Fui me tornando uma espécie de conselheira nas questões amorosas e familiares dos adolescentes, mas a experiência mais expressiva foi na escola infantil, onde fui convidada a trabalhar por ter essa delicadeza especial. A princípio eu só iria auxiliar a professora na sala de aula, mas logo me vi sozinha com vinte crianças. No meio do ano já eram mais de trinta, e as mães continuavam querendo passar seus filhos para a minha sala Foi lá que comecei a perceber que algumas crianças, na faixa de cinco à seis anos, já davam sinais da homoafetividade, através de gestos e preferências. Acompanhando a infância do meu sobrinho e a sua juventude, para mim era natural perceber estes sinais em outras crianças.
Por que escrever um livro?
Quando me mudei para Florianópolis, o primeiro adolescente que se achegou a mim, foi o filho do dono do apartamento que eu aluguei, ele era gay e não aceito pelos pais. Lá fui eu conversar com a mãe dele. Fui feliz na abordagem. Ele “passou o fio” para outros que vieram me procurar, um atrás do outro. Como já falei, sempre gostei de ler, mas nunca me passou pela cabeça escrever um livro, justamente por não ter estudado. Um dia quando eu estava palestrando, em minha casa, para dois amigos homoafetivos, um deles disse: “Flávia, pelo amor que tu tens com a gente e por tudo o que tu sabes, escreve um livro. Assim tu vais poder ajudar até quem não te conhece.” Eu relutei com a idéia, assim como meu marido também, pelo fato de não ter nenhuma formação. O meu desejo de ajudar, porém, foi maior que todos os contratempos que tive durante os três anos que levei para escrever “Me Aceite”.
Quais foram as dificuldades para elaboração e lançamento deste trabalho?
Quando cheguei a Florianópolis não tive moleza. Como eu não estava em condições de escolher o tipo de trabalho, trabalhei de doméstica na baixa temporada e de diarista, para turistas, no verão. Quando comecei a escrever o livro, chegava do trabalho, dava um jeito na casa, preparava o jantar e depois que todos iam dormir, me “atracava” a escrever até o sono me dominar. Quando amanhecia, começava tudo outra vez. Comecei desenhando a capa. Depois escrevi o meio do livro, onde falo dos sinais da homoafetividade que a criança emite e só então, passei para a história: começo e fim.
Sobre o que se trata Me Aceite?
No livro começo a contar a história de dois meninos, desde o nascimento até aos dezesseis anos de cada um, com todos os conflitos que envolvem suas famílias e com um final gratificante para ambos. Uma família de classe media alta tem um único filho, que é protegido pela mãe e cobrado pelo pai. A outra, uma família pobre tem quatro filhos, três meninas e o caçula, que será o motivo da discórdia familiar. No meio da narrativa eu criei um Centro de Atendimento Voltado a Homoafetividade Infantil, a C.A.V.H.I. As duas famílias serão beneficiadas por ela. A família rica, através de um seminário beneficente em prol do centro, assistirá a uma palestra sobre o amor sem cobranças e o respeito pela sexualidade do filho. A família pobre será encaminhada para a C.A.V.H.I. para receber esclarecimento sobre a sexualidade do filho, que receberá reforço escolar, incentivo a auto estima e noções de cidadania. Aprenderá a ter respeito por sua homossexualidade, praticará esportes e terá formação profissionalizante, freqüentando, em meio período, a instituição.
Objetivos do livro são minimizar o preconceito e a homofobia, e sensibilizar a sociedade para o fato de que a homossexualidade não é uma escolha: ela é nata.
Como foi o lançar seu livro durante a Semana da Diversidade?
Creio que devido aos nove pareceres que obtive, antes de editar o livro, entre eles o da desembargadora da Vara de Família do Rio Grande do Sul, o livro, na sua ficha catalográfica foi classificado nos temas psicologia infantil e homossexualidade.
O lançamento na Casa da Diversidade resultou do convite feito pelo Tiago Silva. O livro tinha ficado pronto um mês antes. Em resposta aos telefonemas que fiz para alguns amigos pedindo a indicação de lugares para o seu lançamento, recebi do Tiago, o pedido de fazê-lo na Semana da Diversidade, o que “veio bem a calhar”. O sucesso, no lançamento, resultou em convite, efetuado pelo Governo Federal, através da Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH, para fazer novo lançamento em Brasília, por ocasião da Conferência Nacional GLBT.
Quais os projetos daqui para frente, espera lançar outro livro?
Meus projetos futuros são ousados. Já iniciei um segundo livro sobre o tema Homoafetividade. A previsão do seu lançamento é para o final do ano que vem e seu título será “Então É Natal”. Assim como “Me Aceite” nasceu de um pedido, meu novo projeto veio, também, da mesma forma.
Na contra-capa do livro “Me Aceite” descrevo a C.A.V.H.I., o Centro de Atendimento Voltado à Homoafetividade Infantil. O que acontece? As pessoas lêem e perguntam “Onde fica isso?” … “No meu sonho”, respondo eu. A coisa começou a tomar forma pois eu já trabalho com crianças, adolescentes e seus familiares. Como não faltaram pedidos para que eu investisse nesse sonho, meu esposo e eu já começamos a desenvolver o projeto que pretendo levar à Brasília para obter sua aprovação.