Regresso ao jardim secreto

Allan Johan 22 de Dezembro, 2008 01h21m

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Há momentos na vida que enterramos para sempre. Para olharmos para frente, tentamos esquecer o passado. Mas o pretérito é imperfeito e faz parte de nosso corpo. Dele, vieram várias marcas, aquelas que podemos ver e aquelas que apenas sentimos. Somos o que fomos, seremos no futuro reflexo do nosso presente, admitamos isso ou não.

Tenho 26 primaveras de vida e a impressão de que passei por muitos mais invernos. Não espere que o texto que vem a seguir seja alguma poesia. A vida é bela e doce, na ficção. Não precisaria estar falando isso para você, tenho certeza de que você chegou a esta conclusão. A vida é prosa, e não verso e muito menos um soneto, todo pré-determinado. Saiba que se trata de uma história real. O personagem existe e essa história se repete.

Aos 12 anos de idade, vivi talvez um dos piores anos de minha vida. Tenho orgulho de mim por ter superado aquele momento crítico. Gostaria que tudo tivesse sido diferente, mas não foi. E acho que, apesar de tudo, agi da melhor maneira possível. Se hoje somos produto de cada segundo que passamos, agradeço por tudo que passei.

Eu estudava em um dos melhores colégios do interior do Rio de Janeiro, na cidade de Campos dos Goytacazes. O Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora, ou apenas Auxiliadora, ou Censa, como era escrito em nossos uniformes, era um colégio modelo, para crianças abastadas, administrado por freiras salesianas e com mais de 70 anos de tradição. Meus pais haviam sido transferidos de uma cidade vizinha, Macaé, onde nasci, e já não era a primeira vez que eu mudava de ambiente. Tínhamos o hábito de mudar a cada dois anos. Não sei do que fugíamos, mas eu aprendi a fugir também.

Lembro-me bem de todos os amigos desta época, de toda a minha rotina, de tudo o que passei. Na sexta série, me apelidaram de Buba em homenagem à hermafrodita que havia na novela. Meus olhos verdes e cabelos lisos colaboraram para isso. Talvez o meu jeito comunicativo também. Eu raramente respondia, mostrava o dedo, mas nem todos me chamavam assim. Eu jogava no time de vôlei do colégio, não apenas de manhã, no horário da aula, mas também de tarde. Eu precisava conviver com as brincadeiras o dia inteiro.

E as traquinagens foram piorando. Começaram com um apelido inocente até histórias de que eu teria feito sexo com um atleta do time de futebol. Durante os torneios, quando precisávamos dormir em alojamentos, eu até avaliava a possibilidades de ficar com as meninas, por medo de que algo mais sórdido fosse feito. E as histórias corriam e ganhavam requintes de crueldade. Eu fazia teatro, inglês, preenchia o tempo. Em casa, eu era uma criança estressada, descontava nos outros o maltrato que recebia. Lembro que minha irmã certa vez me chamou de ‘viadinho’ e eu peguei a arma de meu pai, descarregada, e apontei para ela. Ela nunca mais repetiu aquilo.

Não conseguia falar com meus pais sobre o assunto. Não achava que eles me ajudariam, e de fato não iriam. Achei que levaria uma surra por ter ameaçado daquela forma a minha irmã mas não, ela quem levou uma bronca. Na cidade anterior, eu brigava quase toda semana no colégio com um menino que pegava no meu pé. Lá, por incentivo do meu pai, que veio com o famoso papo se eu era “um homem ou um rato”, eu reagia às provocações, o que fez com que todos se voltassem contra mim, até os professores. Para meu pai, eu só deveria estudar, e a vida dele era muito mais complicada. Depois de anos, nós nos entendemos. Perdoei-o por não me ajudar naquela época, embora ele nunca tenha me perdoado por não ser o que ele sempre idealizou.

Eu me defendia como podia e me questionava se eu gostava de meninos. Não tinha coragem de pagar para ver, então, eu galanteava as meninas e pensava nos meninos. Nada sexual. Idealizava o príncipe encantado que me salvaria. Aproximei-me de um colega e o amei sem nunca dizer isso para ele. Na época, eu nem tinha essa consciência, mas posso afirmar que era um amor puro, platônico e infantil. Um dia, ele percebeu. As pessoas começaram a pegar também no pé dele e ele se distanciou. Fiquei sozinho. Eu era um garoto sozinho, que sonhava alto para não colocar os pés no chão. Compensava os momentos terríveis e seguia em frente.

Outro ponto de estresse na minha adolescência era o problema de ginecomastia que eu tinha. Eu culpava as mamas um pouco salientes de tudo. Implorava aos meus pais para fazer a cirurgia. Só fui realizá-la aos 19 anos. É bastante comum essa reclamação entre os meninos, pois o mínimo de diferente que você for dos outros já te trará problemas. Na verdade, eu evitava ficar sem camisa perto dos outros garotos e apenas um ou outro brincava com o assunto, mas nesse quesito eu tinha vários concorrentes para atazanarem no meu lugar. Os negros, os deficientes físicos, os gordos me geravam um pouco de alívio pois também eram alvo de perturbações. Mas eu sempre entrava no rodízio das humilhações e logo já era alvo de nova incomodação.

O opressor talvez não tenha noção de seus atos. Para eles, e acredito que ainda pensam assim, era apenas uma brincadeira inocente. Mas a verdade é que nem eu mesmo sabia da minha sexualidade. Talvez o menino que se matou em Ponta Grossa (ver matéria relacionada) tenha morrido sem saber a sua. A sexualidade é algo que dá medo às pessoas, pouco se fala sobre o assunto, pouco se sabe de fato. Dá medo por ser desconhecido. E não falta falso moralismo e hipocrisia no tema. Por isso, as pessoas exploram esse mundo de forma homeopática e discreta, sempre impondo limites que vão sendo superados. Eu fui jogado muito além da linha da sexualidade de um menino de 12 anos de idade.

Certa vez, um rapaz do time de basquete, um ano mais velho, quebrou meu dedo com uma bolada durante uma aula de educação física. Jogou a bola que bateu no meu dedo mindinho direito e este entortou e fraturou. Em seguida, ele veio e falou que aquilo não era esporte para boiola. O rapaz também era um dos prediletos do pessoal para se tirar sarro. Ele tinha dentões e o povo o chamava de Batista, um personagem de humor dos anos 90. O apelido Mônica já era de outro menino. Acho que ele fez isso para descontar o seu estresse. Aliás, com o fim da novela, para o meu desespero, meu apelido se tornou Linda Inês, em razão do meu cabelo com corte chanel.

Se crianças têm respeito umas pelas outras, o respeito que tinham por mim estava quase perdido. Lembro de um dos garotos da minha sala me agarrar por trás. Eu era raramente incomodado fisicamente, no máximo era um tapa na cabeça ou na bunda. Esse rapaz, o mais forte da sala e muito bonito, chegou a pedir para eu ir com eles e outros garotos para o banheiro. Elogiou a minha bunda. Não fui. Aliás, o banheiro era lugar que eu temia. Eu jamais havia pensado que era homossexual, era inadmissível na educação que eu tivera, por isso, depois desse episódio, fui até a coordenação da minha série exigir uma atitude contra desses dois casos.

A sub-coordenadora disse que não era nada. Chegou a perguntar se eu era “isso” que eles falavam. Eu disse que não. Então, ela falou que aquilo bastaria para eu não levar a sério as provocações. Em relação ao rapaz do time de basquete, ela conversou com ele na minha frente e ele alegou que apenas repetia o que todo mundo falava. Sobre o assédio que sofri, cujo narrei para a professora, nada foi feito. No final, acabei me sentindo culpado, pois eu deixava tudo aquilo acontecer.

A exumação de tudo isso é necessária para que as pessoas entendam a importância de proteção de jovens homossexuais do preconceito diário nas escolas. Atitudes irresponsáveis como apelidos maldosos, pegar no pé de uma pessoa diferente, assédio moral, podem causar reações imprevisíveis. A diversidade deve ser apoiada, respeitada. Não são poucos os casos de suicídio causados pela depressão por causa do preconceito. A discriminação está também presente nessas pessoas que têm problemas sérios de auto-aceitação ou dificuldade de encarar os dedos reprovadores e uma cultura que prega que ser diferente é ser inferior. Mas elas não podem ser acusadas de serem fracas, eu não me acho mais forte por ter sobrevivido. Creio que elas não tiveram a mesma sorte.

Relembrando tudo isso, vejo que eu era muito feliz. Naquele mesmo colégio eu era destaque no time de voleibol e ganhamos muitos campeonatos. Em um jogo, cheguei a fechar um set inteiro dando saques, vários ‘aces’ seguidos, e havia até torcida gritando o meu nome. Bem, na verdade, eles gritavam Linda Inês. Naquele dia, uma menina veio me procurar, eu a dispensei, fiquei assustado; havia deixado a minha sexualidade para depois. Recebi troféus em vários concursos de poesia. Aplausos no teatro. Dava aula no laboratório de informática, era considerado prodígio, e sempre fui muito elogiado e admirado pelos professores. Preferi acreditar que eu era especial e fiz, talvez ainda hoje faça, tudo para que eu seja ou me sinta assim. É uma forma de fazer com que a aceitação seja mais fácil, de compensar o que não precisa ser compensado. É um resquício de meu próprio preconceito interno.

Sofro ao ver que os adolescentes gays ainda passam por tudo isso nas escolas, dói saber que vivemos em uma sociedade que nos instiga a perder a dignidade e a compostura. Luto contra tudo isso diariamente. Contra os livros que exalam sangue, contra as mãos que cheiram a morte. Contra todos os que se calam e que querem que as pessoas abandonem as suas essências para serem o que não são. A felicidade está dentro de você, por mais estranha que ela possa parecer. E se você não é feliz, ao menos deixe que as outras pessoas sejam.

Outros invernos e verões vieram. Aos 18 anos, eu percebi que eu era homossexual sem nunca ter feito sexo. Como passei grande parte da minha vida pensando no assunto, fui comprovar isso de forma madura. Foram anos para eu me aceitar, para eu chegar naquele momento. Mais alguns anos para que meus pais me entendessem, contei-lhes logo após a minha primeira experiência. Não foi um caminho escolhido, pois tenho a certeza de que jamais escolheria passar por tudo isso. No que eu poderia optar, fiz com a maior certeza do mundo. Mas nada evitou o medo, as preces, o frio, a angústia. Passei por tudo, sempre à espera do próximo verão. A vida de um gay é normal. Anormal é o preconceito que ele precisa enfrentar. Isso explica as muitas mortes e sanidades pelo caminho, entre as pedras.

Hoje, confesso que vivi momentos à beira de praticar ações desesperadas.  Eu imaginava colocar fogo no colégio, me matar, colocar purgante na caixa d’água da escola, ir armado e matar o primeiro que começasse a fazer gracinhas… E acho que nada disso aconteceu por muito pouco. Eu vivia em um inferno, uma prisão onde eu tinha ido parar sem direito a um julgamento justo. Talvez eu tenha agüentado tudo isso por achar que, quando nós nos mudássemos novamente, eu teria a chance de recomeçar. E assim foi. Nunca mais fui incomodado pelo meu passado, no qual a cada ano eu jogava uma camada de terra, e neste canteiro plantei flores.

Este texto é dedicado ao jovem de Ponta Grossa, Thiago Roberto de Arruda, de 19 anos, que se matou no início de março. Meus sinceros sentimentos à família. Dedico também aos meus pais, amigos e  outras pessoas que nunca mais deixaram eu me sentir sozinho.

PS: Graças a Deus, em 1992 não havia internet…
 

Allan Johan

SOBRE O AUTOR

Allan Johan

O jornalista Allan Johan é fundador da Revista Lado A, militante LGBTI e primeiro Coordenador da Diversidade Sexual da Prefeitura Municipal de Curitiba entre março de 2017 até maio de 2020.

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