Meu primeiro namorado

A sociedade pressiona. Sou mulher e gosto de mulheres, desde sempre. Quando criança, eu não entendia as diferentes orientações sexuais. Como entender algo que não nos é informado? Mas de alguma forma, sabia que aquelas brincadeiras gostosas com as amiguinhas eram para ser secretas. À medida que o tempo foi passando, comecei a conhecer as regras do contrato social e as justificativas vazias da sociedade contra a homossexualidade. Iludi-me ao pensar que era efemeridade. No meu primeiro relacionamento fixo e estável, decidi que era hora de “sair do armário”. Não haveria melhor momento para isso: logo a explosão hormonal da puberdade passaria. Era hora de estar pronta para construir minha personalidade e começar a traçar os caminhos da vida adulta. Aos 14 anos, em reunião com as diretoras da escola, revelei que era bissexual – lésbica soaria radical demais para a idade.

-Como você sabe disso? Já ficou com meninas?

-Tenho uma namorada.

-Já beijou sua namorada na boca?

-Tenho uma namorada. Uma namorada de verdade.

-Quer que contemos para a sua mãe?

-Sim, acho que ela deve saber.

O restante do dia foi cinza. Papai me buscou na escola e levou-me a um banco de praça para me pedir que lhe contasse algo. O que, até hoje não sei. Talvez o constrangimento do momento tivesse impedido o diálogo. Chegando em casa, mamãe tinha à minha espera uma belicosa falação que era despejada velozmente, no mesmo ritmo em que um leão devora a caça. Mas a única ciência que parecia ter a incumbência de ser tirada de mim era o nome da tal namorada. O resto do problema foi assentado com meses de psicoterapia. Homossexual? Imagine! Foi coisa da idade, uma confusão da adolescência. Esses hormônios… – assim ficou posto lá em casa.

Após aquele episódio eu estava terminantemente proibida até de proferir o nome da menina nas dependências do lar enquanto fosse propriedade dos meus superiores – era assim que me sentia. Assim, meu primeiro relacionamento fixo e estável foi por água abaixo. Anos depois, eu e ela tentamos reatar, mas a intimidade não existia como outrora e já não havia mais desejo. Apenas boas e eternas lembranças.

Eu precisava ser heterossexual com a mesma urgência que uma mãe deve alimentar a cria. Comecei a ficar com meninos em qualquer ensejo que surgia. Beijei muitos para tentar quitar meus débitos. Retive a tentação pelo sexo feminino e me senti pronta para a sociedade.
Aos dezessete anos eu já saía à procura de parceiras novamente. Nesta idade, os assuntos das conversas com as amigas já eram todos direcionados ao sexo – tema que eu dominava com sabedoria, mas não da maneira correta. Perder a virgindade anatômica era o que faltava para selar a veracidade da minha heterossexualidade, embora eu ficasse com mulheres. Eu não me entendia mais. Bom… Como a confiança dos meus pais por mim estava sendo restabelecida, aproveitei para começar a viajar sozinha. Longe do alcance do cultivador olhar deles, não foi difícil conquistar o que eu queria. Minha decepção foi grande ao perceber que ter o hímen rompido não resolveu minha sexualidade. Alguns meses depois, já na maioridade legal, consegui um namorado. Conheci meu macho pela internet. Morávamos longe, mas não seria impossível manter uma relação assim. Cortei todos os laços com o lesbiandade para me dedicar inteiramente a ele. Foi um relacionamento difícil. Sofri com mentiras e traições (meu primeiro namorado chegou a transar com uma prostituta na minha frente). Para mim, as relações sexuais eram confusas, desajeitadas, inertes e terminavam sempre em lágrimas e dor.

Sentia-me uma boneca inflável, um objeto à mercê da masculinidade do meu parceiro. O órgão genital masculino se transformou em sinônimo de medo e desconforto. Visitei consultórios de muitas ginecologistas à procura do motivo de eu não sentir prazer, mas sempre recebia o mesmo diagnóstico: você é normal. Algum dia, meu companheiro decidiu que estava satisfeito, que agora quem precisava gozar era eu: “diga-me como você gosta, farei o que você pedir”, dizia ele. Mas eu não sabia de como eu gostava porque nunca tinha gostado. “Relaxe”, dizia ele. “Respire fundo, apenas sinta”. Ah, eu sentia. Sentia muita dor.
Quase três anos se passaram até eu sentir a primeira lasquinha de prazer. Tudo mudou! Eu seria uma ótima namorada. Viajamos muito juntos, ficamos noivos, fizemos planos: moraríamos juntos daqui a alguns meses, nos casaríamos e teríamos filhos.

Minha família se orgulhava de mim pelo meu relacionamento tão estável duradouro. Há quase dois meses fiquei solteira. Embora eu quisesse enxergar somente flores, havia muitos frutos podres. As lembranças dos momentos ruins jamais se apagariam da minha memória. Elas vinham à tona com uma freqüência muito grande,e o meu primeiro namorado era o único elo que nos unia. Bastou uma última traição dele para que eu tomasse as rédeas do bom senso e desse fim à nossa união. Não sofri, não chorei e não sinto saudades. Recuperei minha dignidade e estou pronta para viver novamente, seja com a sexualidade que for.

Redação Lado A :A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa