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50 tons de gay

Redação Lado A 20 de Fevereiro, 2013 16h37m

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Seres humanos começam a enquadrar outros em caixas no momento que se avistam – “Aquela pessoa é perigosa?”, “Ela é atraente?”, “Será um parceiro em potencial?”, “Será uma provável oportunidade de networking?”. Nós fazemos esta pequena interrogação quando conhecemos pessoas para fazer um sumário mental delas: “Qual o seu nome?”, “De onde és?”, “Que idade tens?”, “O que fazes da vida?”. Então começamos a ficar mais pessoais com nossos questionamentos internos: “Já teve alguma doença?”, “Já se divorciou?”, “Está com mau hálito enquanto responde minha interrogação?”, “O que você gosta?”, “De quem você gosta?”, “Que gênero você gosta de levar para a cama?”.
 
Isto até faz sentido. Nós somos neurologicamente programados para procurar pessoas como nós mesmos. Começamos a formar panelinhas assim que temos idade suficiente para saber o que é aceitação. Nos unimos baseados em qualquer coisa que pudermos – preferência musical, raça, gênero, a quadra em que crescemos. Nós procuramos estar em ambientes que reforçam nossas escolhas pessoais. Porém, às vezes, apenas uma questão como “o que você faz?” pode parecer como alguém abrindo uma caixinha minúscula e pedindo para você se espremer para entrar nela. Porque as categorias são limitantes; as caixas são muito estreitas. E isto pode se tornar realmente perigoso.
 
Então, há alguns anos, Proposition 8, o grande debate de igualdade no casamento, criou bastante polêmica nos Estados Unidos e internacionalmente. E, naquele tempo, casamento não era algo que eu desse a mínima. Mas me atingiu o fato de que os EUA, um país com um passado de direitos civis tão manchado, conseguia repetir seus enganos tão erroneamente. E assistir as discussões se tornou um pensamento interessante de que a separação de religião e Estado estava essencialmente criando barreiras geográficas através do país, entre locais que as pessoas acreditavam no Prop. 8 e nos que não acreditavam. Então, esta discussão começou a criar barreiras geográficas à volta das pessoas.
 
Se isso fosse uma guerra com dois lados díspares, eu, por padrão, estaria no time homo, pois eu certamente não era 100% hétero. Na época eu estava começando a emergir de anos de um zig-zag de crise de identidade que me fez ir de ser um menino afeminado, para um garoto extremamente esquisito que parecia uma garota com roupas masculinas. Para o completo extremo de super compensar e falhar terrivelmente ao tentar parecer como os outros garotos, até chegar na atual exploração exitante do que eu realmente era, um garoto andrógino que gosta de gurias e guris, dependendo da pessoa.
 
E por volta da mesma época acabei conhecendo o trabalho da fotógrafa iO Tillet Wright, me identificando com sua arte e história de vida. Ela foi criada no subúrbio de Manhattan no início dos anos 80, por volta do epicentro do movimento punk. Um ambiente que a protegia das dores da intolerância e das restrições sociais de uma criação religiosa. Naquela região, se você não fosse uma drag queen ou um pensador radical ou um artista performático de qualquer tipo, você que era o estranho. Crescendo assim nas ruas de Nova York, as pessoas são encorajadas a confiar nos seus próprios instintos e seguir suas próprias idéias. Sendo assim, aos seis anos ela decidiu que queria ser um garoto, até que um dia ao querer jogar basquete com os colegas, eles não a deixaram pois era coisa de meninos. Ela raspou a cabeça e adotou a “fachada” de menino. Aos 11, se tornou atriz infantil no filme Julian Po, no papel de um menino. Ninguém nunca desconfiava que na realidade era uma menina. As outras crianças geralmente a agarravam pelo pescoço para ver se tinha pomo-de-adão ou a pegavam no meio das pernas e, ao ir ao banheiro, ela virava os sapatos para parecer que estava urinando em pé.
 
Mesmo assim ela nunca odiou seu corpo ou genitália. Não se sentia no corpo errado, só estava atuando elaboradamente. Até que um dia acordou aos 14, a puberdade chegando, e decidiu que queria ser uma garota de novo. Agindo daquele jeito desde os seis anos, não se necessitou exatamente sair do armário, não foi nenhuma surpresa para os pais dela quando, aos 15, ela disse que o primeiro amor dela era uma garota e nem quando três anos depois ela disse que estava namorando um garoto. Tendo essa criação não ortodoxa, nunca sendo pressionada a se definir como qualquer coisa, ela poderia ser o que era, crescendo e mudando a cada momento.
 
No começo de seu trabalho artístico, ela passou um ano fotografando essa nova geração de garotas como ela, que ficavam meio em cima do muro. Garotas que andavam de skate mas em calcinhas de lacinhos, garotas que tinham cortes de cabelo masculino mas pintavam as unhas, garotas que usavam sombra escura combinando com seus joelhos arranhados, garotas que gostavam de garotas e garotos que também gostavam de garotos e garotas e que todos odiavam ser definidos de qualquer forma. Achei isto muito interessante, mas ao mesmo tempo o mundo explodia entre debates acalorados nos quais pessoas comparavam à bestialidade o amor fora da esfera heterossexual.
 
Nunca fui ativista, nunca balancei bandeiras na minha própria vida. Mas essa realização cresceu em mim nessa época: Eu fazia parte da minoria. Baseado em uma faceta da personalidade de alguém, que as tornava um cidadão de segunda classe. Como alguém poderia votar para acabar com os direitos de uma vasta variedade de pessoas baseado em um elemento de sua personalidade? Como alguém poderia dizer que nós, como um grupo, não merecemos direitos iguais a todos os outros? Nós eramos mesmo um grupo? Qual grupo? E será que alguma dessas pessoas conheceu uma vítima de sua discriminação? Eles sabiam quem eram as pessoas contra quem estavam votando e qual era o impacto disto?
 
E é bem neste ponto focal que está a maravilha do trabalho de iO, pensando que se eles pudessem olhar nos olhos dessas pessoas que eles estavam colocando na área de cidadões de segunda classe, talvez tornasse mais difícil para eles discriminar. Ela achou um jeito de apresentar estas pessoas através da fotografia pura sem artifícios, sem iluminação especial, sem manipulação de qualquer forma. Pois através de uma fotografia você pode examinar os bigodes de um leão sem o medo de ele arrancar a sua cara fora.
 
Fotografia não é apenas relevar filme, é revelar ao espectador algo novo, um lugar que eles nunca viram antes, mas mais importante, revelar pessoas que eles talvez tenham fobia. A revista Life introduziu através de fotos gerações de pessoas à locais distantes e inóspitos que eles talvez nem sabiam que existiam. Através de uma série de retratos bem simples, iO decidiu fotografar qualquer pessoa no país que não se definia 100% hétero, o qual é um número infinito de pessoas. De fato, um cometimento bem grande, mas com a ajuda da instituição Human Rights Campaign, nasceu o projeto Self Evident Truths (Verdades auto evidentes). 
 

Self Evident Truths from Self Evident Truths on Vimeo.

Confira a tradução livro do vídeo: Eu sou  iO Tillet Wright, nascida e criada em Nova Iorque. Self Evident Truths é um registro fotográfico da América LGBTQ de hoje, com o objetivo fazer um simples retrato de qualquer pessoa que é algo além de 100% hétero ou que estejam no espectro LGBTQ de qualquer forma. O meu objetivo é mostrar a humanidade que existe em cada uma dessas pessoas através da simplicidade de seu rosto. “Temos estas verdades para sermos auto-evidentes de que todos os homens são criados igualmente. “(“We hold these truths to be self evident that all men are create equal”). Está escrito na Declaração da Independência dos Estados Unidos. Uma nação que está falhando ao cumprir as morais sobre as quais foi fundada. Não existe igualdade nos Estados Unidos. A luta por direitos iguais não é apenas sobre casamento gay. Atualmente, em 29 estados, em mais da metade deste país, alguém pode ser demitido LEGALMENTE apenas por causa de sua sexualidade. Quem é responsável pela igualdade? Muitas pessoas dão a mesma resposta: “Todos somos responsáveis pela igualdade”. É um desafio a qualquer um a olhar nas faces das pessoas retratadas e dizer que eles merecem menos do que qualquer outro ser humano.
 

Este vídeo foi assistido por mais de 85000 pessoas, muitas das quais começaram a mandar emails e pedir para mostrar seus rostos no projeto. O objetivo agora é fotografar 10000 rostos. Pois se uma imagem vale mais do que mil palavras, uma imagem de um rosto necessita de um novo vocabulário.  O projeto mostra que visibilidade realmente é a chave, e familiaridade é a porta de entrava para a empatia. Quando um ponto controverso surge através de alguém que se conheça, as pessoas tendem muitos mais a explorar simpatizar ou criar uma nova perspectiva. Criar empatia é a espinha dorsal do Self Evident Truths. iO viajando pelo país relata que obviamente conheceu pessoas que tiveram suas relações com a família cortadas por serem algo além de hétero, mas também conheceu batistas que mudaram de igreja porque a filha era lésbica. 
 
Estas fotografias não apagam as diferenças entre as pessoas. De fato, pelo contrário, elas realçam as diferenças. Elas apresentam não apenas as complexidades presentes em uma multitude de seres humanos diferentes, mas as complexidades encontradas em cada indivíduo. Nós não temos muitas caixas, na realidade temos muitas poucas. iO disse em uma entrevista que em um ponto ela percebeu que a missão dela de fotografar “gays” era inerentemente falha, pois existem milhares de diferentes tonalidades de gay. Estava tentando ajudar, mas perpetou a coisa que tentou a vida inteira tentando evitar – mais uma caixa.
 
“Quão gay você é em uma escala de 1 a 100%?”. Tente perguntar isso à alguém. Chances são de que verás uma crise existencial se revelar à sua frente. As pessoas não sabem o que fazer pois ninguém nunca é incentivado a pensar sobre isso. Você consegue quantificar a sua abertura? No formulário de inscrição no projeto tem essa pergunta, e muitas pessoas optaram por algo entre 70 e 95% ou entre 3 e 20%. Claro, muitas pessoas ainda se definem 100%, mas os resultados mostram que uma porção muito maior de pessoas se identificam de uma forma que tem muitas mais nuances. Muitas pessoas caem no espectro “Cinza” do arco-íris.
 
De forma alguma eu quero dizer que preferência não existe. E eu nem quero chegar no mérito de escolha versus biológico, pois se alguém pensa que orientação sexual é uma escolha, eu desafio a sair e tentar ser cinza. Talvez possa até ter sua foto tirada pelo mérito de tentar! O que eu quero dizer é que seres humanos não são unidimensionais. O que o sistema de porcentagem demonstra é isso: se você tem pessoas homo de um lado e héteros de outro, e enquanto muitas pessoas estão mais perto de um dos binários ou outro, existe um vasto espectro de pessoas que estão no meio. E a realidade que isto apresenta é algo complicado. Se existe uma lei que aprova um chefe demitir um empregado por comportamento homossexual, onde exatamente está a linha que necessita ser cruzada para isto? Está logo ali perto das pessoas que tiveram apenas uma ou duas experiências homossexuais por curiosidade? Em qual ponto alguém se torna um cidadão de segunda classe? 
 
Analisando os fatos, se torna claro quão pobre é limitar pela orientação sexual. Existem tantas pessoas adoráveis quanto detestáveis, radicais ou liberais, bem resolvidas ou instáveis emocionalmente na comunidade LGBT quanto na raça humana como um todo. Tirando o fato do aspecto legal amarrar nossas mãos e se abstrairmos os acontecimentos comuns de preconceito e esforços pessoais, apenas ser algo além de hétero não significa que temos qualquer coisa em comum.
 
Com as milhares de faces que o Self Evident Truths expõem, talvez ao vermos essa progressão da humanidade, algo interessante e útil comece a acontecer. Esperançosamente talvez essas categorias, esses binários, essas caixas simplistas se tornarão inúteis e sumam. Porque realmente, um rótulo descreve nada do que vivemos, ninguém que conhecemos e nada do que somos. Temos que ver seres humanos em toda sua multiplicidade simplesmente. E ver torna difícil para alguém negar a humanidade de outro. Ou pela menos torne difícil negar a alguém seus direitos.
 
Sou eu particularmente que você escolheria negar o direito de moradia, de adotar filhos, de casar, a liberdade de estar aqui, comprar aqui, viver aqui? Sou eu quem você escolheria disonerar como seu filho ou irmão ou irmã ou mãe ou pai, seu vizinho, primo, tio, presidente, policial ou bombeiro? É tarde demais. Porque eu já sou todas essas coisas. Nós todos já somos todas essas coisas, e nós sempre o fomos. Então favor não comprimente-nos como estranhos, comprimente-nos como seus iguais seres humanos, ponto final.
Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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