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Notas sobre o nudismo

Redação Lado A 01 de Julho, 2014 22h01m

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Se há uma diferença perceptível de mentalidade e de costumes entre os brasileiros e os europeus, é a da aceitação, dentre estes, da nudez, como naturalidade, e a sua recusa, da parte de muitos dos primeiros. Quando menos, na Europa há mais receptividade à nudez do que no Brasil, à conta da herença teológica, vale dizer, cristã, que marcadamente influenciou os costumes de conservadorismo, mais presentes entre nós do que na Europa. Eis porque, lá, o naturismo difundiu-se mais do que cá.

Denominam-se de naturismo duas concepções, uma da medicina; outra, dos costumes. No aspecto médico, naturismo, naturoterapia ou medicina natural identifica as práticas profiláticas ou terapêuticas que empregam substâncias naturais, nula ou escassamente processadas industrialmente. No seu caráter holístico (Augusto Comte havê-la-ia adjetivado de “sintética”), ela entende que o corpo acha-se relacionado com a mente e com o ambiente, por modo a formarem conjunto, ao invés de entendê-los como realidades dissociadas, uma das outras.

No aspecto dos costumes, naturismo indica a vida em harmonia com a natureza, mercê do desnudamento em comum, no escopo de favorecer-se o respeito por si próprio, por outrem e pelo ambiente. Segundo os naturistas, os trajes podem representar incômodo e a sua ausência propicia sensação de liberdade, seja no lar, seja em espaços públicos, a exemplo de praias, campos, parques, piscinas, fora de qualquer conotação sexual: a exposição do corpo, inclusivamente da genitália, das nádegas e das mamas, apenas estende a tais regiões o desnudamento que, normalmente, se admite em relação ao restante corpo. Da mesma forma como, fora dos ambientes naturistas, não se atribui inspiração erótica ao desnudamento do tórax, das coxas, dos braços, neles, a exposição das partes sexuais tampouco se conota com a sexualidade.
 

Na nudez naturista expõem-se as partes sexuais, sem sexualidade enquanto, em contrapartida, a mentalidade que leva ao encobrimento delas fundamenta-se precisamente na identificação, como por inerência, entre sexualidade e o que se encobre, e na necessidade de repressão sexual. Para o nudista, a nudez não é sexual; para o encobridor, é-o. Com isto, quem enfatiza a sexualidade não é o nudista, porém o encobridor.
 
Na Alemanha, país por excelência do naturismo, ele é conhecido como “cultura do corpo livre”, expressão pela qual se traduz o vocábulo alemão Freikorperkultur (por abreviação, FKK). 
 
O primeiro grêmio da cultura do corpo livre surgiu em 1898, em Essen. Três anos antes, em 1895, fundou-se em Berlim o movimento juvenil Wandervögel (“ave migratória”), em que os jovens reuniam-se para efetuar longas caminhadas pedestres em florestas, com noites ao relento e banhos nus, em rios e lagos. Em 1914 havia vinte e cinco mil adeptos do Wandervögel, a que se combinaram os movimentos nudistas. Reprimido pelo governo nacional-socialista (nazista) em 1933, recrudesceu após o fim da Segunda Guerra Mundial.
 
Atualmente, o movimento nudista alemão conta com cinqüenta mil adeptos e com parques de nudismo em Berlim, Munique, Hamburgo e Francoforte. Na Alemanha, é comum o desnudamento das pessoas, nos seus lares, e a ausência de vergonha de ser observado nu.
 
Na Dinamarca, na Espanha, na Grécia, na Croácia, na Inglaterra, as pessoas não se escandalizam com a nudez; ao contrário, entendem-na com naturalidade. Nas praias, as mulheres andam de mamas ao vento, ou seja, descobrem os seios.
 
O festival de Roskilde, cidade da Dinamarca, é evento musical juvenil que se realiza desde 1971; das suas atrações uma constitui-se da corrida dos nus, em que homens e mulheres inteiramente desnudados disputam uma corrida.
 
Em várias cidades européias efetua-se a Pedalada Nua, passeio ciclístico cujos participantes, homens e mulheres de todas as idades, apresentam-se parcialmente vestidos (de genitália e mamas veladas) ou, na sua maioria, inteiramente nus ou, se tanto, calçados. Ela destina-se a enfatizar a necessidade de segurança no trânsito e a incutir nas pessoas atitude positiva em relação ao corpo.
 
A primeira Pedalada Nua ocorreu em 2004, na Austrália, nos Países Baixos, na Austrália, na Rússia e nos Estados Unidos da América. Também a houve na Espanha, na Polônia, na Austria, no Canadá, na Dinamarca, na França, em Israel, na República Tcheca, na Letônia e na Nova Zelândia. 
 
Na França, na Espanha e na Inglaterra, os seus participantes, às dezenas, homens e mulheres, apresentam-se de genitália e mamas descobertas, sem nenhuma vergonha de exporem o seu corpo nas ruas e parques, em meio aos olhares dos curiosos e dos indiferentes. É livre fotografá-los e, realmente, populares e participantes fotografam o evento e a nudez com total liberdade. Há imagens de belos homens e de belas mulheres, em que se observam, distintamente, os respectivos corpos, por inteiro, de frente ou de costas. Alguns posam para os fotógrafos: ninguém se escandaliza com a nudez.
 
No Brasil, introduziu-se a Pedalada Nua em 2008, na cidade de São Paulo: a polícia deteve o único dos seus participantes que se manteve despido. De 2009 por diante, passou a realizar-se de noite, no intuito de evitarem-se novas detenções. Quanta diferença em relação às Pedaladas Nuas européias, que transcorrem com nudez integral, de dia, sem que polícia nenhuma interfira sobre ninguém. A intervenção policial e a adoção do horário noturno servem como índice das mentalidades, ainda antiquadas, no Brasil.
 
Em 2014, a Pedalada Nua repetiu-se em Porto Alegre, Florianópolis, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, com diversos graus de desnudamento dos seus partícipes é, já, índice de acréscimo da liberdade de costumes e de abandono gradual da vergonha do corpo. Falta, contudo, muito, aos brasileiros, para igualarem-se aos europeus, na desinibição destes em relação ao seu corpo e na ausência de pejo quanto à nudez. Nos ginásios de musculação de Curitiba, os homens adentram a cabine do chuveiro de cuecas e assim vestidos dela retiram-se. Julgo completamente ridículo que, no vestiário masculino, os homens pejem-se a este ponto.
 
Trata-se da herança cristã que ainda permeia a sociedade brasileira, como conservadorismo de costumes e como critério axiológico em que o natural é motivo de vergonha, tão diferentemente da sabedoria laica, segundo a qual naturalia non turpia, o que é natural não envergonha, e humana non sunt turpia, o que é humano não envergonha. Não deve envergonhar, ao menos; na Europa, não envergonha. 
 
Em décadas anteriores, constituíam tabus a sexualidade em geral e a homossexualidade em particular, com ignorância, homofobia e sofrimentos inúteis para incontáveis homens e mulheres. Tanto a sexualidade quanto a homossexualidade reprimiam-se, a primeira por meio de pudor excessivo, a segundo por repulsa generalizada. 
 
Sem apresentar dramatismo equivalente, a recusa da nudez filia-se, também, à origem bíblica, mercê de inúmeras passagens em que o deus respectivo proíbe a observação da nudez alheia e em que se interpreta o Gênesis no sentido que de, após a expulsão do Paraíso, Adão e Eva passaram a vestir-se (embora os naturistas cristãos entendam diferentemente, no sentido de coonestar a nudez). 
 
Do cristianismo, católico ou protestante, advém a irracionalidade da vergonha do corpo e as respectivas mentalidade e costumes que se perpetuam por imitação, geração após geração, e que merecem reflexão no sentido de avaliar-se a sua justificabilidade, reflexão que os europeus, notadamente os alemães, efetuaram há tempos largos. Daí a liberdade de que desfrutam eles: liberdade sadia e mentalidade livre de preconceitos, tabus e irracionalidades, exemplo para os brasileiros.
 
Galerias de fotografias de gente pelada em: 
 

 

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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