Indireta para Deus

– Eu tenho tanto medo de morrer que, vezenquando, para ser suportável viver eu assumo que não vou morrer.

– Eu já tô em contagem regressiva.
– A gente sempre tá desde que a gente nasceu.

– Mas eu, particularmente, já tô com o prazo de validade vencido.
– Por que diz isso?
– Adivinha.
– Doença?
– HIV.
Então eu engoli o choro. E as palavras. E vim mastigando o caminho inteiro a dor de estômago que engolir choro e palavras me deram. Chegando em casa, tive vontade de ligar para Deus. E pedir para Ele renovar o prazo de validade de uma pessoa. Se pedir não funcionasse, tentaria suborno. E, por último, caso suborno também não funcionasse, ameaçaria dizendo que iria ligar para o Procon.
Mas esqueci que não tinha o número Dele anotado no meu livro de catecismo. Pensei em procurar na Bíblia, então. Aquela lista telefônica da fé. Mas desisti antes de pegar uma. Bíblia é um troço tão antigo que, mesmo que achasse, Ele já teria mudado de número. Né, não?
Suspeitei então que, talvez, não tivessem me passado o número do telefone Dele nas missas que eu frequentei. E caso houvessem, não havia anotado na época julgando não achar necessário um dia.
Então eu quis gritar. Para acordar esse Deus vagabundo que dormiu depois que criou o mundo. Sim, porque eu preciso acreditar que Deus, depois que criou o mundo, foi almoçar e não voltou mais. Eu preciso acreditar Ele foi fazer uma sesta depois do almoço e esqueceu de programar a porra do despertador para Se acordar de volta depois.
Com quem a gente fala quando quer pedir a demissão de Deus? Porque dormir em trabalho dá justa causa, não dá? Abandono de incapaz dá processo, não dá? Porque foi isso que Deus fez, não foi?
Eu preciso acreditar que Deus esqueceu da gente só porque tá dormindo. Só para não acreditar que Ele é um puto sádico que goza vendo a gente sofrer. Que nossa dor é o pau duro de Deus.
Mas tudo que eu consegui fazer foi chorar.
Chorar 2847285265726562 lágrimas. E desejar que cada uma delas repusesse nele uma célula de CD4 destruída. Desejar que aqueles quatro caras a bordo de um submarino amarelo cantando “love is all we need” estivessem certos. E que o amor, de alguma forma, fosse mesmo tudo que a gente precisasse. Mesmo que o amor agora matasse. E que essa merda de vírus não castrasse na gente a vontade de amar o outro, apesar de.
Marcelo Oriani mora em São Paulo. E, vezenquando, no abraço de alguns meninos. É chato, teimoso, egoísta e mentiroso compulsivo por falta de opção. Ator e dramaturgo por paixão. E também um pouco esquizofrênico. Quando fala de si na terceira pessoa do singular, pelo menos.
Redação Lado A :A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa