Manifesto dos Homossexuais Conservadores

Em 10 de maio de 2009, o blogue “Gays de Direita” lançou o seu manifesto, ainda no ar, que reproduzo e que comento a seguir. Ei-lo: 
 
“Nossa primeira mensagem!
 
Este é um grupo de gays conservadores que acreditam poder oferecer ao mundo algo muito melhor que a simples baderna sexual.
 
Em função da influência da esquerda que domina os debates homossexuais, o mundo ainda não deixou de ver o gay como algo bizarro e muito perigoso. Isso porque a militância gay, em geral, está focada em projetos para beneficio da esquerda, e não dos gays. Ao nos utilizar como ferramenta de combate à moralidade, afirmam erroneamente que combater a homofobia é o mesmo que combater o capitalismo. Colocam-se na vanguarda da luta pela liberdade e democracia, discursando falsamente pela tolerância, para concluir o seu projeto de dominar a esfera política. Ao tentar desmoralizar a sociedade, confundem-na com uma série de leis inúteis e contraditórias, além de projetos sociais sem resultados positivos e gastos públicos desnecessários, ou quando muito, apenas nutrem uma extensa rede corrupta de apoiadores desses partidos. Nesse contexto há de se entender porque muitas pessoas se sentem inclinadas a não respeitar homossexuais.
 
Governos de esquerda que existiram pelo mundo mataram centenas de homossexuais ao longo de sua história, numa forma tão sem precedentes, que seria inviável fazer uma comparação com qualquer outra coisa. Como quadrilhas criminosas, se apoderaram da gestão pública, para juntar grandes somas de dinheiro e um estilo de vida cheio de conforto.
 
As estatísticas ridículas de morte de gays no Brasil, comparada à de países onde a discriminação é muito mais cruel, comprovam em absoluto que não existe perseguição sexual no Brasil. Abusos existem, claro, como em toda sociedade, mas isso não desqualifica o Brasil como um dos países mais liberais do mundo.
 
Assim, pretendemos oferecer ao homossexual uma visão diferente para seu papel na sociedade. É sempre difícil as pessoas entenderem porque queremos nos aproximar da família, visto que o histórico do preconceito de muitos homossexuais começa dentro de casa. Mas também existe muita ansiedade desnecessária na adolescência do gay, pois a maioria dos pais acaba aceitando-os. A verdade é que com um pouco de compreensão e tempo, muitas famílias acabam aceitando os filhos têm.
 
Porém, lamentavelmente, esses esquerdistas utilizam essa ansiedade para arregimentar membros sob a falsa necessidade de termos que “confrontar” a sociedade, mas não temos. Não temos que dar as costas a Deus e ignorar nossas religiões e mudar quem somos. Não temos que obedecer a essas pessoas! Podemos impedir que a homossexualidade seja utilizada como ferramenta desumana, insuportável e odiosa. Não queremos destruir uma sociedade da qual fazemos parte.”
 
Minhas glosas:
 
É singular tudo isto.
 
Estranha-me que, na percepção dos manifestantes, “o mundo ainda não deixou de ver o gay como algo muito bizarro e muito perigoso”, à conta da influência esquerdista, no movimento homo.
 
Que parte do mundo, vale dizer, da sociedade brasileira e não só, veja o homossexual como bizarro, admito-o, se por bizarro (aliás, dispensável galicismo em voga) entender-se o que suscita estranheza, perplexidade, interrogação. Porém a sociedade homofóbica não vê o homossexual com estranheza ou, se é assim que o vê, o é em proporção irrelevante. Ela o vê e o trata com desprezo, ódio, repulsa, ainda que (felizmente) declinantes. A homofobia, o preconceito que o movimento homo contraria não consiste em inocente estranhamento, em mera sensação de esquisitice; elas se traduzem por repulsa das pessoas, por vitupérios, por piadas, por escândalo, pela invocação da cólera divina, por indignação, mesmo por crimes, ainda que tais reações venham se esmaecendo na parcela esclarecida dos brasileiros.
 
Não atino em que é a sociedade reconhece perigo nos homossexuais. Talvez, alguns desinformados e alguns alarmistas imputem ao homossexual a condição de pedófilo e de perversor dos ainda hetero, como se os pedófilos sejam homossexuais (em regra, dá-se o oposto) ou como se a companhia ou a amizade de um homossexual pudesse induzir o filho do pai “tradicional” à homossexualidade. Se é a tal perigo que o manifesto alude, ele se refere à interpretação da gente mais ignara e mais primitiva, no seu entendimento da natureza humana.
 
Contudo, o manifesto relaciona a alegada bizarria e o suposto perigo à presença esquerdista no movimento homossexual. Para ele, a causa do estigma de bizarro e perigoso deve-se não à condição sexual das pessoas, em si, porém à conotação (relativamente) esquerdista da militância homo. 
 
Ora, a militância esquerdista no Brasil avolumou-se, ao longo de décadas, quer em eleitorado, quer em eleitos, quer em presença intelectual nos meios escolares e acadêmicos, sem que os respectivos agentes fossem tachados de bizarros nem de perigosos. Talvez perigosos politicamente, para quem se encontrasse na banda adversária. É-me esquisita a lógica segundo a qual, devido à presença esquerdista, que cativou considerável parcela do público brasileiro, especificamente os homossexuais passassem por bizarros e perigosos. Parece-me que há grave falha de senso de realidade, da parte dos manifestantes, ou inépcia na expressão do seu pensamento.
 
Seja como for, a recusa aos homossexuais não provém nem proveio da militância esquerdista que (diga-se a verdade) no período de enfrentamento do regime militar omitiu-se, de todo, em relação a eles. A esquerda, terrorista ou política, era indiferente à causa homossexual, ao mesmo tempo em que a sociedade conservadora, filiada sincera ou hipocritamente, à “família tradicional” cultivava a homofobia ou, no mínimo, com ela convinha por omissão e cumplicidade.
Não desmerece a esquerda haver aderido ao movimento homossexual; ao contrário. Desmerece a direita (ou os conservadores ou como se prefira apodá-los) haver (cristãmente) se mantido indiferente aos anseios do público vítima da homofobia. 
 
Tanto quanto eu saiba, a causa homo, justa e humanitária, foi, ainda que tardiamente, cooptada pela esquerda e não pela direita. Aquela, crítica do capitalismo e (por isto ou não apenas por isto) também, em parte, da sociedade capitalista, gozava de mais liberdade de espírito com que examinasse as instituições e os costumes, fora de certo comodismo, de certa conivência de quem, não sendo diretamente afetado pela homofobia, era-lhe indiferente e até conivente, por haver entranhado o etos consueto.
 
É ainda mais tardiamente que a parcela homossexual “conservadora”, finalmente se exprime em relação à causa homo, ao mesmo tempo em que se dissocia do ideário esquerdista.
Se a um dos lados do espectro ideológico animou sentido de oportunidade, foi à esquerda e não ao da “família tradicional”. Objetar-me-á este que não se tratou de oportunidade, senão de oportunismo. Porém do lado “conservador”, houve sempre indiferença e conivência. Mal por mal, o da direita é pior.
 
Em um ponto, entretanto, convenho com os manifestantes: a causa homo não precisa (não deve) ser instrumentalizada por ninguém, designadamente, no caso, pela esquerda (nem pela direita nem por nenhum grupo, qualquer que seja). Ela pode (e deve) existir por si só, à parte de interesses alheios a si própria. O movimento homo deve bater-se pela erradicação do preconceito, pelo respeito pelas pessoas, pela informação de todos, pela transformação da condição sexual das pessoas em indiferença.
 
Causa-me espécie dizer o manifesto que a causa homo é usada como instrumento de combate à moralidade: a causa homo é forma de moralidade, no sentido de liberdade e respeito por cerca de 20% dos homens do mundo e parcela pouco menor de mulheres. Entendo que mais liberdade e respeito e nenhuma discriminação indevida acrescentam moralidade e incrementam o bem-estar dos visados.
 
 A causa homo (liberdade, respeito, indiferença) não deve ser empregada como forma de negação da moralidade e não o é, a menos que se entenda por moralidade a manutenção da famigerada “família tradicional”, como única forma aceitável de família (e de adoção). Neste sentido, especioso e tendencioso (e aliás tipicamente cristão) a causa homo é, sim, contrária à moralidade, à moralidade entendida de modo tacanho, arcaico e “conservador”. 
 
Moralidade equivale-me a respeito, honestidade, solidariedade, cuidado com o próximo, senso de limites, reconhecimento das liberdades alheias e não à exclusividade da família tradicional.
 
A causa homo é legítima e dispensa vinculações ideológicas para sê-lo. Vinculações ideológicas podem parasitá-la e, possivelmente, desservi-la, na medida em que, no embate ideológico (capitalistas x anti-capitalistas) ela expõe-se a críticas desnecessárias e sujeita-se a envolver-se, dispisciendamente, com causas a que é profana, o que, por outro lado, não desmerece que os anti-capitalistas combinem a sua militância com a causa homo. Quer o façam sincera ou oportunisticamente, de todo ou em parte, todo esforço neste sentido é bem-vindo. 
 
Na asserção do manifesto, o Brasil é dos países mais liberais do mundo. Sim, se se compará-lo com a Arábia Saudita e outros, enforcadores de homossexuais e impositores da lei islâmica. Não tanto, se se compará-lo com a Europa, em geral. Europa, aliás, ex-cristã, pós-cristã, secularizada em etos e em patos. Não tanto, se se compará-lo com a vizinha Argentina, com Portugal, com Espanha, com Holanda, com o Canadá e outros, cujas populações tratam a homossexualidade com muito mais indiferença e abertura do que parte importante do público brasileiro, público, aliás, eleitor e eleito, como o demonstra a desproporção entre a bancada evangélica e a inexistente bancada pró-causa homo.
O Brasil não é dos países mais liberais do mundo, pelo menos em relação aos trinta e dois milhões de evangélicos, à importante contingente do público interiorano (de etos ainda arcaico), à relevante parcela sub-instruída dos brasileiros. 
O machismo, a sujeição feminina, o autoritarismo dos pais de certa geração ainda viva, a inculcação católica da repressão sexual (felizmente, em geral já prescrita) destoam da condição do Brasil como dos países mais liberais da humanidade.
 
Há muita ansiedade desnecessária nos homossexuais adolescentes, pois a maioria dos pais acaba por aceitá-los, assevera o manifesto. Que afirmação otimista ! Otimista e relativa. Se, por um lado, abrandou bastante a ansiedade nos jovens de classes média e alta urbanas, das cidades grandes, filhos de pais esclarecidos, por outro lado há, ainda, incompreensão e intolerância no interior, nas vilas, nas cidades pequenas, nos meios evangélicos, em muitas famílias “tradicionais”, de pais machescos, de mães cristãs, de pai e mãe pouco esclarecidos e despreparados para a eventualidade e a realidade de um filho ou uma filha homo.
 
O autor desta asserção inspirou-se, provavelmente, no seu caso e no dos que conhece. Não conhece todos e desconhece ou finge ignorar os que se acham em condição oposta ou, pelo menos, problemática.
 
Da mesma forma, é relativo dizer-se que com tempo e compreensão, muitas famílias acabam por aceitar os seus filhos. Sim, relativamente, em geral, às de classe média e alta, urbanas, instruídas e de cidades grandes; muito menos ou não, relativamente aos evangélicos, aos interioranos (com exceções), aos incultos. Tendencialmente, com o passar do tempo, a aceitação aumentará e, progressivamente, a hostilidade subsistirá em pais anosos ou evangélicos.
Os homossexuais não devem confrontar-se com a sociedade. Ninguém tem de confrontar a sociedade; há que confrontar, na sociedade, o que infelicita as pessoas, o que está errado. Está errada a corrupção, a instrumentalização da causa homo, a homofobia. Para ater-me a esta, ela há de ser combatida pelo esclarecimento, pela informação, pelo silêncio das pregações religiosas homofóbicas. Digo mais: pela conversão da igrejas à chamada inclusão.
Homos, bis, trans, desejam aceitação e respeito. Mal vai a causa do respeito pela diversidade humana se ela for usada por este ou aquele grupo para fins camuflados ou para negar a sociedade em que vivemos. Ela deve, na sociedade em que vivemos, negar o que merece ser negado, vale dizer, a homofobia. Não se faça dos adeptos da causa homo e dos próprios homo, o equivalente moderno dos cristãos nos primeiros séculos, inimigos odientos da sociedade romana em que viviam.
 
Um passagem fez-me mossa: a de que não “temos” (os homossexuais autores do manifesto) de dar as costas a deus (grafo com minúscula: deus não é nome próprio.) nem às suas religiões.
 
Ao longo dos derradeiros oitocentos anos, o cristianismo foi vetor de homofobia e insistentemente invocou os famigerados versículos bíblicos anti-homossexualidade. Era e é em nome de Jeová e do cumprimento da sua vontade que se verberava e verbera a homossexualidade (como, demais, toda expressão sexual diversa da ejaculação vaginal do marido na mulher, para procriar). 
 
Porém a teologia, grande camaleoa da cultura, cambia consoante variam as tendências da época. É tendência da época hodierna a aceitação da homossexualidade (no sentido de erradicação de hostilidade e de advento de indiferença por ela como qualificador ou desqualificador das pessoas). Tal mutação operou-se fora do cristianismo, contra ele, a despeito dele e com a sua animadversão. A igreja católica e as protestantes (notadamente as evangélicas, no Brasil) persistem na condenação da “prática” homossexual, ou seja, aos atos homossexuais, à exceção de algumas igrejas ditas “inclusivas”, que interpretam a Bíblia ao seu modo e admitem a homossexualidade, como afetividade e como exercício voluptuoso.
 
Na teologia tudo cabe: basta selecionarem-se ou omitirem-se dados trechos da Bíblia; enfatizar uns e desdenhar de outros, e tudo se acomoda para as conveniências de ocasião ou para o estado da mentalidade em voga ou que se tenciona contrariar. O grande instrumento, mais do que a causa homo na militância anti-capitalista, é a Bíblia na militância cristã.
 
Seja como for, a existência deste manifesto (em que se coadunam homossexualidade e cristianismo) testemunha a receptividade de alguns cristãos à sua condição homossexual, sinal de que a causa homo vem obtendo algumas adesões mesmo em certos meios religiosos. Como observei acima, trata-se, contudo, de recepção muito tardia e que emerge menos como afirmação da condição homo do que como dissociação de parte dos homossexuais (cristãos) da influência esquerdista no movimento homo. Manifestou-se a recusa do esquerdismo e não a afirmação do aspecto humanitário ou cristão da causa homo. É como se se tratasse da instrumentalização do movimento homo, às avessas, pela parcela do público homossexual conotada com o capitalismo (por tabela, com o cristianismo. Possivelmente, os autores do texto são olavinhos, vulgo [em francesia dispensável] “olavetes”.).
 
Francisco, papa, emitiu sinais de sentido contrário ao preconceito e à homofobia. Mesmo assim, a igreja está, ainda, longe demais de retomar a mentalidade do séc. 13, em que no meio católico falava-se abertamente na homossexualidade real ou presumida de Jesus, em que havia amores apaixonados entre clérigos e em que havia uma espécie de teologia homo. A teologia atende a todos os gostos, desde que predominantes ou que, no caso, vão predominando.
 
Entre a liberdade e a naturalidade do etos greco-romano acerca da sexualidade, e a repressão sexual, neurotizante, do cristianismo, sobreveio o que reputo clamorosa imoralidade, a da infelicitação multi-secular de proporção enorme da humanidade. Governos esquerdistas aniquilaram, sim, número ingente de homossexuais e não só; as igrejas cristãs infelicitaram, neurotizaram, afligiram número ainda maior de heterossexuais e de homossexuais. A censura aos governos esquerdistas (no capítulo que o manifesto aflora) conquanto verdadeira, coaduna-se mal com os males inflingidos pelo cristianismo em relação à sexualidade em geral, o que inclui a homossexualidade em particular. Governos totalitários esquerdistas oprimiram corpos e mentes, e destruiram corpos, em lapsos reduzidos; o predomínio religioso dos porta-vozes e do ministros de Jeová ocupou mentes, por séculos a fio, do que resultaram a ginecofobia (ódio e desprezo pela mulher, até o século IX, e o machismo tão próprio dos brasileiros); o anti-semitismo (o morticínio perpetrado pelo nazismo foi preparado intelectualmente pelas teologias católica e protestante); a homofobia. A igreja católica não está, nunca esteve inocente, por mais que outros estejam culpados. Os homossexuais cristãos não carecem de repudiar a sua religião, porém devem, pelo menos, estar informados do papel funesto que ela desempenhou historicamente, sempre que acusarem o papel igualmente sinistro dos totalitarismos esquerdistas. Uns foram ruins, a outra não foi melhor.
 
Estranhou-me, finalmente, o anonimato do manifesto, ao menos na forma como ele foi publicado. Por que o anonimato ? Alguém se esconde ? Alguém tem algo que esconder ? O quê ? De quem ? Por quê ? 
 
Redação Lado A :A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa