“Mentes Perigosas”, de Ana Beatriz Barbosa Silva (2009, editora Fontanar), trata da psicopatia. É livro utilíssimo no reconhecimento dos psicopatas e na prevenção do seu comportamento maligno, da parte das pessoas em geral, suas vitimas em potencial.
Encerra o derradeiro capítulo do livro uma série de sugestivas observações, relativas à mentalidade presente nas sociedades ocidentais e que merecem atenção e criteriosa reflexão: segundo a autora, as últimas cinco décadas vem se caracterizando pela adoção de atitudes psicopáticas nas relações humanas. “Nossa sociedade, diz ela, está fundamentada em valores e práticas que, no mínimo, favorecem a maneira psicopática de ser e viver” (pág. 189). Há individualismo, em que as pessoas adotam a si próprias como critério decisivo do seu comportamento e como elemento preponderante na sua escala de valores, o que implica três atitudes: a busca da felicidade pessoal em detrimento de qualquer obrigação em face dos demais; a ausência de um padrão moral que permita hierarquizar os comportamentos, o que, por sua vez, resulta na aceitação de qualquer tipo de atitude, desde que satisfaça ao indivíduo; a consideração dos demais como instrumentos dos nossos desígnios, vale dizer, como objetos que usamos em favor próprio.
Neste egocentrismo, os interesses e conveniências de cada qual, os seus caprichos e paixões, as suas preferências e desejos correspondem ao critério decisivo das suas relações com o seu semelhante.
Devido a isto, têm-se deteriorado os laços afetivos e os valores centrados no outro, a exemplo da honestidade, da reciprocidade e da responsabilidade perante o próximo. “Estamos perdendo o senso de responsabilidade compartilhada no campo social e de vinculação significativa nas relações interpessoais. O aumento implacável da violência [não] é senão uma resposta lógica e previsível a toda essa situação” (página 192), na medida em que a lógica da agressão, física ou moral, consiste no embotamento do senso de respeito pelo próximo e de limites da ação individual: em ambos os casos, o autor da violência prioriza as suas emoções, em desfavor da vítima.
Nas ficções das telenovelas, nos romances, nos filmes dos cinematógrafos, as personagens maldosas, inescrupulosas e destituídas de sentimento de culpa tornaram-se os ídolos da atualidade (pág. 192), sintoma de que uma proporção significativa de pessoas identifica-se com a sua forma de ser e de tratar a outrem. Mesmo os indivíduos mentalmente sadios, freqüentemente adotam comportamentos psicopáticos, que reputam aceitáveis quando os praticam embora, no seu egocentrismo, repugnem-se deles quando lhes são o objeto: a moral egocêntrica tende a criar uma duplicidade, em que o indivíduo se permite o egoísmo em face dos outros, porque lhe convém, e insurge-se contra ele, quando os outros o tratam egoisticamente, porque, então, ele o molesta.
A moral egocêntrica induz ao afastamento mútuo das pessoas; leva a não se contar com o próximo como um fator de auxílio e de simpatia e a contar-se com ele como fator de indiferença e mesmo de hostilidade ou de ameaça. Daí a desconfiança, o medo, a reserva como formas de proteção, que tendem ao “cada um por si”.
“Somente uma educação pautada [por] sólidos valores altruístas poderá fazer surgir uma nova ética social que seja capaz de conciliar direitos individuais com responsabilidades interpessoais e coletivas. A aprendizagem altruísta é o único caminho possível para combatermos a cultura psicopática pautada na insensibilidade interpessoal e na ausência de solidariedade coletiva.” (pág. 193).
Se de uma ética centrada no indivíduo e que leva ao egocentrismo, é natural que se originem ações e reações caracterizadas pelo desprezo do próximo, nota essencial da psicopatia, por outro lado, de uma ética altruísta, centrada também no próximo e que leve ao desenvolvimento de todas as formas de generosidade, é natural que se produzam ações e reações caracterizadas pela consideração apreciativa do próximo, nota essencial da mente não psicopática e de uma sociedade solidária.
A consideração do próximo originou virtudes tradicionalmente adotadas por inúmeras sociedades, como a pureza de intenções, a sinceridade, a veracidade, a modéstia, a humildade, a paciência, o arrependimento, o perdão, a fidelidade, o império sobre as próprias emoções, a admiração pelo mérito, o desprendimento, a solidariedade, o senso de dever, a bondade; a dedicação à família, o espírito público, o rigor profissional, a probidade nos negócios, o cumprimento da palavra dada; a moderação dos apetites, a gentileza, o espírito de conciliação, o senso de justiça, a honestidade para consigo próprio, o esforço por melhorar-se, o senso de compromisso, o exercício da bondade como forma de satisfação, o respeito pelo diferente.
Trata-se de formas sofisticadas de altruísmo, em que a afetividade, a inteligência e a atividade referem-se diretamente ao próximo ou, indiretamente, pelos efeitos que produzem no indivíduo e que, melhorando-o, melhoram-lhe a relação com os demais.
Tais valores importam (a) inculcar nas crianças, como função inexorável dos pais, muitos, atualmente, culpados pela permissividade com que deformam os seus filhos e cujo egoísmo, destarte, se avoluma, ou pela negligência com que lhes descuram da educação, abstendo-se da transmissão de exemplos e de critérios de vida. O papel da educação deve ser o de dispor a viver para outrem, dizia Augusto Comte; e (b) cultivar nas pessoas em geral, pela moderação do egoísmo e pela estimulação do altruísmo, critério ético formulado com veemência por Augusto Comte, criador do Positivismo, dado corresponder o altruísmo a uma condição inata de todo ser humano e, com isto, suscetível de incremento por meio da educação, e ao fundamento da vida em sociedade. O principal problema humano, afirmava ele, consiste na subordinação do egoísmo ao altruísmo, ou seja, na constituição de uma mentalidade oposta à de natureza psicopática.
A diferença entre os povos não corresponde apenas à riqueza econômica dos países respectivos, e sim, também, à psicologia de cada qual, que se averigua, também, pelo comportamento das pessoas umas em relação às outras. São povos desenvolvidos os que adotam formas de viver e de conviver inspiradas pelo altruísmo, em que o meio humano, representado pelos demais, é acolhedor e gratificante: ali as pessoas são mais felizes, subalternizam o ter em favor do ser, e, certamente, com mais prontidão identificam os psicopatas, o que lhes permite precaverem-se contra os seus malefícios.
No cultivo das virtudes tradicionais, paulatinamente desenvolvidas pela civilização ocidental ao longo de séculos, como lenta acumulação de uma sabedoria de que cada geração é herdeira do seu pretérito, encontra-se a manutenção de um patrimônio inestimável da Humanidade, a elevação do ser humano na sua qualidade e a formação de valores em que a existência de cada um favoreça a dos demais. Eis a riqueza moral da espécie humana, de que são portadoras as sociedades ocidentais: pertence a cada um manter-se ao nível dela e, ao fazê-lo, defender-se e defender aos demais de indivíduos que se encontram radicalmente abaixo ou fora dela.
Obs: esta é a parte final da resenha que escrevi de “Mentes Perigosas” e cuja íntegra acha-se em http://arthurdelacerda.spaces.live.com.