Homofobia no Exército

Perante a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o general de exército Raymundo de Cerqueira declarou que “independentemente da acusação do crime de deserção, o fato de se assumir um efetivo convívio homossexual afeta a honra, o pundonor e o decoro da classe. Fere a coesão, imprescindível elo nas ações de combate, e solapa o alicerce da disciplina. Só entende quem é da caserna”.

Para o general, o fato, em si, de um militar assumir um convívio homossexual é motivo de desonra coletiva para a sua corporação. Logo, para ele, apenas o convívio, entenda-se, a relação marital, com uma mulher é decorosa, ou seja, ele admite moralidade apenas na heterossexualidade e censura, como indecente, a homossexualidade, o que é abertamente homofóbico.

A vida privada de alguém respeita apenas a si próprio; não interessa a terceiros. Se alguém, militar ou não, convive afetiva e sexualmente com um homem ou com uma mulher, tal convivência pertence à privacidade de ambos e nenhum deles deve satisfações a terceiros por conta disso nem terceiros quaisquer devem julgar-lhes as escolhas afetivas e sexuais.

Quantas conseqüências institucionais o general vislumbra em um aspecto da vida privada de militares homossexuais! O convívio deles é desonroso e impudico para a classe, ou seja, para os demais militares, como se a vida privada de algum militar interessasse aos seus colegas; como se a forma como algum militar se conduzisse na sua vida sexual desonrasse ao Exército inteiro. Se um soldado copula com uma mulher, é honroso; se sodomiza um homem ou se é sodomizado, toda a coletividade dos militares acha-se conspurcada.

Pensar assim revela uma evidente falta de senso de proporções, um exagero levado ao extremo do absurdo, equivalente aos que alarmam-se com a possibilidade de se institucionalizar o casamento guei, sob o temor de que ele representará o fim da família,  um sinal infalível de decadência da civilização cristã-ocidental e um ato de perseguição aos cristãos.

No caso do Exército, a sensibilidade exacerbada e no do casamento, o receio da destruição da família tradicional denotam uma reação emocional fora da realidade dos fatos e mais imaginação do que a observação serena dos fatos. 

A homossexualidade pertence à natureza humana e apresenta-se em cerca de 20 ou 25% dos homens, ao menos como inclinação (embora não necessariamente como prática). 

Portanto, de 20 a 25% dos militares devem ser homossexuais, como a mesma proporção em relação aos padres, aos advogados, aos engenheiros, aos lixeiros, aos músicos e à população masculina em geral, sem que a honra coletiva de qualquer destas profissões se desmereça. Por que em relação ao Exército seria diferentemente?

Os militares são homens como outros quaisquer; são heterossexuais, bissexuais e homossexuais como os demais homens da restante Humanidade.

São valores (também) do pessoal castrense, a lealdade, o destemor, a correção de caráter, a dedicação à pátria, o senso de disciplina. Não compreendo como se incluam neles, a obrigação de ser heterossexual e como a homossexualidade lhes possa corresponder a uma infâmia. Infamantes são a mentira, covardia, a preguiça, o desleixo, a traição, a desonestidade, a hipocrisia, a violência gratuita, o crime; jamais a condição sexual, em que sentido for.

O general exprimiu o que, infelizmente, ainda existe: preconceito e arrogância de quem julga os outros em função da sua condição sexual e não do seu desempenho profissional nem do seu caráter pessoal.

Se, por outro lado, ele não formulou uma opinião pessoal e sim enunciou um estado da mentalidade dos seus colegas, se transmitiu o pensamento dos militares em geral, que não especificamente o seu, então, tanto pior, pois há homofobia generalizada no meio militar, tanto mais grave, porquanto, nele, o preconceito exprime-se por indisciplina profissional.
 
Errados não são os militares homossexuais e sim os preconceituosos, devido ao preconceito e (segundo o general) à sua desobediência. Um militar insubordinado deve ser punido; um militar preconceituoso precisa de ser educado no sentido do respeito e da fraternidade; melhor: no da disciplina e da obediência ao seu superior, qualquer que seja a sexualidade deste.

Quer seja homofóbico o general apenas, ou os militares em geral, deveriam, um e outros,  recordar-se dos gregos e dos romanos antigos, povos essencialmente militares, que aceitavam livremente a sexualidade humana nas suas expressões de bissexualidade e de homossexualidade, sem que nos respectivos exércitos falhasse a disciplina nem houvesse desonras coletivas por isso. Ao contrário, e para citar dois exemplos singelos, recordo o “Banquete” de Platão, em que o militar Alcebíadas apaixona-se por Sócrates,  e o célebre Batalhão Sagrado, de Tebas, constituído por cento e cinqüenta pares de aguerridos amantes, por quem, diante de cujos corpos, espalhados no campo de batalha, Alexandre declarou a sua admiração: é porque na Grécia antiga os militares não julgavam do valor e do desvalor dos seus pares pela apetência sexual ou afetiva de cada um e aceitavam a natureza humana como ela é e não segundo a mentalidade que o cristianismo, religião essencialmente anti-sexual,  constituiu após a antigüidade e que os modernos, lamentavelmente, herdaram.

Redação Lado A :A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa