As trans do Transgrupo Marcela Prado, de Curitiba, lançaram uma carta de repúdio ao vereador José Carlos Chicarelli (PSDC), da bancada evangélica, por ter proposto que “a Prefeitura comece a multar os clientes de travestis e prostitutas para acabar com a “putaria”na Praça Ouvidor Pardinho, Getúlio Vargas e Avenida Iguaçu”. O verador ainda afirmou que mais blitz da Lei Seca poderiam evitar que homens embriagados não acabem sendo enganados por travestis. O vereador teria ido até um destes locais e afirmou que “Famílias estão sendo destruídas por essa prática de prostituição e é preciso fazer alguma coisa”. Para o vereador, a prostituição deveria ser transferida para regiões mais longes do Centro da cidade.
Para o grupo, “Declarações como estas incitam o ódio e a intolerância e promovem a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”.
O vereador ainda sugere a criação de vagas de empregos para as travestis e transexuais e a entidade, na nota, pede para ele dar o exemplo e contrate alguma para seu gabinete. “Questiona-se aqui o Sr. Vereador acerca do números de pessoas transexuais e travestis que trabalham junto a ele no seu gabinete. Até onde esta Associação tem ciência, não existe uma sequer. Situação esta que demonstra o quanto o seu discurso é carregado de ódio, descaso, incongruente e digno de pena. Pois uma pessoa que salienta ser necessária a criação de empregos para esta categoria de pessoas, deveria ser a primeira a empregar uma, com as várias vagas que são abertas para preenchimento de cargos em gabinetes municipais.”, diz a nota.
Confira mais declarações do vereador na Carta de Repúdio abaixo:
Oficio 30/2014
Curitiba, 28 de fevereiro de 2014.
CARTA DE REPÚDIO AO VEREADOR JOSÉ CARLOS CHICARELLI
O Transgrupo Marcela Prado, Associação de Travestis e Transexuais, fiel aos princípios decretados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, vem a público manifestar seu repúdio ao vereador José Carlos Chicarelli (PSDC), diante de seu discurso leigo e desrespeitoso – senão imbecil – proferido à Prefeitura de Curitiba no dia 25 de Fevereiro de 2014.
Membro da bancada evangélica e titular da Comissão da Saúde, Bem Estar Social e Esporte, Chicarelli é cirurgião dentista formado em Farmácia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Visivelmente preocupado com o bem-estar da população, Chicarelli propôs que a Prefeitura comece a multar os clientes de travestis e prostitutas para acabar com a “putaria” – sim, estas foram as palavras utilizadas pelo vereador para se referir à problemática da prostituição na região da Praça Ouvidor Pardinho, Getúlio Vargas e Avenida Iguaçu. Ainda sobre o mesmo tema, o vereador, feminista radical e defensor assíduo da Lei Seca, quer que sejam feitas blitz com bafômetro para que homens embriagados não acabem sendo enganados por travestis. Segundo Chicarelli, as travestis deverão ser transferidas para regiões mais distantes do centro da cidade. “Fui nesses dois bairros no início da noite para ver de perto a situação e está um caos. Famílias estão sendo destruídas por essa prática de prostituição e é preciso fazer alguma coisa”, disse ele, referindo-se aos bairros Boqueirão e Rebouças. Controverso, Chicarelli ainda sugeriu que sejam oferecidas outras oportunidades de emprego para as travestis.
É importante ressaltar que a prostituição não é crime no Brasil. Entretanto, existem delitos relacionados à prostituição, sendo estes causa comum da prisão de profissionais do sexo. São eles: Ato Obsceno (art. 233 do Código Penal: “Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.”), Perturbação da Tranquilidade (art. 65 da Lei de Contravenções Penais, Pena – Prisão Simples, 15 dias a 02 meses ou multa) ou Importunação Ofensiva ao Pudor (art. 61 da Lei de Contravenções Penais: “Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – multa”. Ciente de que muitas travestis e transexuais praticavam tais delitos, o Transgrupo Marcela Prado criou, em 2006, o Código de Ética das Travestis e Transexuais Profissionais do Sexo, documento com diversas diretrizes que orientam travestis e transexuais quanto à sua posturas, atitudes e princípios perante a sociedade.
Mais importante ainda é destacar um aspecto intrigante acerca de Chicarelli: seu lema, “Políticas Sociais e Atenção aos Menos Favorecidos”. Por “Políticas Sociais e Atenção aos Menos Favorecidos” entende-se a atenção social e midiática que o mesmo provoca acerca de sua imagem enquanto ser político. Explicando melhor: não é de hoje que Chicarelli se utiliza de assuntos polêmicos para se autopromover. Em Novembro de 2013, o vereador apresentou um projeto de lei que obriga estabelecimentos como motéis, pensões e hotéis a realizarem um cadastro obrigatório de seus clientes, com o objetivo de reprimir a prática de abuso de menores.
A verdade é que Chicarelli negligenciou três direitos importantíssimos:
1) O direito à privacidade, garantido no Artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos humanos, que diz que “Ninguém será objeto de ingerências arbitrárias em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de ataques a sua honra ou a sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou ataques.”;
2) Artigo 5º da Constituição Federal brasileira: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”;
3) O direito de ir e vir, previsto no Artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal brasileira, que diz que: “XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.”;
Desta forma, deixamos aqui o seguinte questionamento: sendo o Lenocínio (Artigo 169º do Código Penal) uma prática criminosa que consiste em explorar, estimular ou favorecer a prostituição, não estaria o Estado sendo criminoso?
A resposta a tal questionamento seria no mínimo um “talvez, está sim sendo criminoso”. Está sendo criminoso, inclusive, por meio das palavras proferidas por este representante da sociedade, ou que pelo menos deveria ser, uma vez que foi eleito por voto popular e percebe salário proveniente de impostos pagos por toda a população desta cidade.
Questiona-se aqui o Sr. Vereador acerca do números de pessoas transexuais e travestis que trabalham junto a ele no seu gabinete. Até onde esta Associação tem ciência, não existe uma sequer. Situação esta que demonstra o quanto o seu discurso é carregado de ódio, descaso, incongruente e digno de pena. Pois uma pessoa que salienta ser necessária a criação de empregos para esta categoria de pessoas, deveria ser a primeira a empregar uma, com as várias vagas que são abertas para preenchimento de cargos em gabinetes municipais.
E, pior ainda, uma pessoa que faz uso de um discurso político fajuto para solicitar que tais pessoas sejam levadas para regiões mais distantes de Curitiba, apresenta ainda um discurso elitista. Pois se o Sr. Vereador considera as travestis que são prostitutas de rua como um problema social, por que este mesmo vereador julgou por bem levá-las para um lugar mais distante? Pode-se concluir, então, que para o Vereador apenas as tais famílias residentes no Centro da cidade de Curitiba é que merecem proteção contra tais pessoas?
Ou seja, com tal discurso, mais uma vez o Sr. Vereador mostra-se absurdamente preconceituoso, não só contra as travestis e transexuais, como também com as famílias residentes nas regiões afastadas do centro de Curitiba.
Declarações como estas incitam o ódio e a intolerância e promovem a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.
Na fala dos direitos humanos e da democracia, o linguajar não pode ser outro que não o da alteridade, pois, somente à luz deste enfoque permite-se que as diferenças não se inibam e saiam à luz. Nesse sentido, sublinhamos a sempre presente lição de Boaventura de Sousa Santos: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
A garantia da igualdade, também compreendida como inclusão e reconhecimento das diferenças, é condição elementar para o pleno desenvolvimento dos direitos humanos e da democracia.
Discursos como o proferido pelo Vereador José Carlos Chicarelli (PSDC) devem ser banidos da sociedade, e principalmente do nosso meio político, uma vez que vereadores e deputados não estão ocupando o cargo para o qual foram eleitos para realizarem uma varredura social com base nas suas convicções religiosas ou filosóficas. Tais pessoas devem pensar na sociedade como aquele ideal presente no preambulo da nossa Constituição Federal, qual seja:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Desta feita, mostra-se descabida a “varredura” proposta pela Sr. Vereador José Carlos Chicarelli, e a presente Associação de Travestis e Transexuais Marcela Prado sente-se no dever de repudiar as declarações do mesmo, e expressar o compromisso inarredável com a luta pela promoção e defesa dos direitos HUMANOS de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, e com a preservação do Estado democrático de direito e das liberdades constitucionais.
Atenciosamente
Rafaelly Wiest
Presidente do Transgrupo Marcela Prado
Secretaria Trans – Brasil – ILGA
Suplente da Diretoria Executiva da ABGLT