Dr. Farina: a história do médico condenado por realizar as primeiras cirurgias de trans do Brasil

Considerado por muitos um profissional inovador e à frente de seu tempo, Dr. Roberto Farina enfrentou também o outro lado do sucesso profissional, a crítica e até um processo durante a Ditadura. O médico foi pioneiro nas cirurgias de redesignação sexual em pessoas trans no Brasil e inspirou as demais pesquisas sobre o assunto.

A transexualidade no Brasil de 1970 era pouco discutida e, mais do que hoje, e até vista como algo antinatural. A primeira cirurgia instrumentada pelo Dr. Roberto Farina aconteceu nesta época, em caráter experimental, quando operou pela primeira vez a manicure Waldirene Nogueira, em 1971, no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Na época, professor de Cirurgia Plástica da Escola Paulista de Medicina, Farina já acumulava vasta experiência antes de iniciar as pesquisas para o procedimento que realizaria em Waldirene. Passou horas em laboratório fazendo testes em cadáveres para então remover o genital masculino da manicure e construir o feminino, o que mais tarde geraria um enorme transtorno judicial.

Em 1975 Dr. Farina tornou seu feito público em um congresso de medicina, quando já havia realizado outras cirurgias de redesignação sexual no Brasil. O médico não foi pioneiro apenas nas cirurgias femininas, mas também na masculina, quando mais tarde, em 1977, operou João W. Nery, hoje um dos maiores ativistas LGBT do Brasil.


A condenação

No ano de 1976, o que fora considerado um grande avanço pela comunidade médica e científica, despertou na justiça uma investigação ferrenha. O Ministério Público acusou Farina por lesão corporal, considerando as cirurgias realizadas pelo médico como uma “mutilação”. Intimado a fornecer os nomes de todos os seus pacientes operados, Roberto Farina se negou ao mesmo tempo em que sua primeira experiência médica desse tipo, Waldirene Nogueira, entrava na justiça para retificar seu nome. Com base nos documentos da manicure, a justiça viu uma brecha para condenar o médico e submeteu Waldirene a diversos exames constrangedores que no fim confirmaram sua identidade feminina.

Mesmo após o esclarecimento da comunidade médica sobre a necessidade de operar Waldirene, assim como outras pessoas transexuais que procuraram o Dr. Farina, o já falecido promotor Messias Piva continuou com o processo. Segundo ele, “Não deve o jurista impressionar-se com as atitudes sentimentais expressas por Waldir e afirmadas, com certo sensacionalismo pelos médicos, mediante alusões ao ‘seu sonho de ser mulher’. A realidade é outra (…) Waldir Nogueira é um doente mental”.

As declarações pouco profissionais e cheias dos preconceitos e dogmas da época que reduziam transexuais a doentes mentais, usadas por membros da justiça na tentativa de condenar o Dr. Farina, revoltaram a defesa do médico e toda a comunidade científica. Enquanto as cirurgias de redesignação sexual avançavam cada vez mais no exterior, o Brasil relutava em debater sobre o assunto por motivos conservadores. Diante da condenação de Dr. Farina a pelo menos dois anos de prisão, em 1978, a repercussão foi ainda maior.

A absolvição

Embora no Brasil poucos apoiassem a iniciativa de Farina, dezenas de organizações médicas internacionais enviaram solicitações à justiça brasileira para que reconsiderasse o caso. No Brasil, apenas alguns pesquisadores, as pessoas operadas pelo médico e a equipe do hospital que acompanhou as cirurgias ajudaram na defesa do profissional.

Após muito transtorno e constrangimento, o médico foi absolvido em novembro de 1979, quando os desembargadores responsáveis pelo caso anularam a condenação. Definitivamente livre dos percalços da justiça, o Dr. Farina lidava agora com o preconceito social. Sua clientela diminuiu consideravelmente e muitos reduziam seu trabalho fazendo escárnio, alguns até mesmo insinuaram que “quem fosse operar o nariz com ele sairia com um pênis implantado no rosto. Mesmo assim, continuou a fazer as operações (de mudança de sexo). Dizia que não podia virar as costas para os transexuais”, disse o Dr. Gláucio Farina, sobrinho do médico.

Legado

Roberto Farina tinha mais do que satisfação profissional em seu pioneirismo nas cirurgias de redesignação sexual. A atitude do médico entendia a aflição e o sofrimento de pessoas que viviam com um membro que não lhes pertenciam apenas por convenções sociais. “Lamentavelmente, as nossas leis, costumes e tradições não têm um mínimo de compreensão, tolerância e consideração para os transexuais (…) A investigação científica, paralelamente ao avanço da tecnologia, aos poucos vai vencendo os seus maiores inimigos que são a ignorância e a superstição”, escreveu o médico em seu livro “Transexualismo”, de 1982.

Logo após sua absolvição, ainda em 1979, a história de Roberto Farina abriu espaço para a discussão sobre transexualidade e a cirurgia de redesignação. Embora a justiça ainda não se posicionasse plenamente a favor do procedimento, a condição de que a cirurgia pudesse ser realizada se profissionalmente indicada amenizava a tensão do processo transexualizador. Apenas em 1997 o Conselho Federal de Medicina autorizou as cirurgias em caráter experimental. Em 2008, o procedimento passou a ser realizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) mediante acompanhamento médico e psicológico de pelo menos dois anos antes da cirurgia.

Dr. Roberto Farina faleceu em 2001, aos 85 anos, deixando um legado inovador e o incentivo à evolução social e científica. Seu nome foi eternizado pelo Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans Professor Roberto Farina, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), departamento que oferece serviço de saúde para a população trans.

 

 

 

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