Meu pai também fala como o Bolsonaro e colocou uma arma na minha cabeça por eu ser gay

Há algum tempo eu já havia colocado para fora este peso que carreguei por quase 20 anos. Decidi não me arrepender de permanecer calado mais uma vez. A possível vitória de Bolsonaro me assusta. Assusta tanto que tenho crises de pânico, desenvolvi um cobreiro, que é a manifestação do vírus da catapora da infância. Perdi um tufo do meu cabelo. Simplesmente me olhei no espelho e um buraco estava lá. Não tenho medo na minha alma, mas o pavor invade meu corpo de forma que não posso controlar. Remédios, técnicas de relaxamento, terapia, mais remédios.

“Dentro da minha casa não”, repetia o meu pai várias vezes. Ele era do tipo de homem que mesmo casado falava de outras mulheres. O tipo que é o melhor pai provedor do mundo mas que no dia a dia com a família tratava a todos com terror. Ele não gostava de ser contrariado, e quando isso era feito ele jogava tudo que fazia na cara de todos. Algo bem comum, infelizmente.

Nunca imaginei que o relacionamento abusivo passaria das ameaças. Um dia, quando eu já tinha 18 anos, quando discutia com ele sobre sair para balada, ele pegou a arma na gaveta e disse: “Chega. Prefiro um filho morto a um filho viado”. Ele já havia dito essa frase antes, me lembro que ainda pequeno ouvi. Ele encostou a arma na minha testa e eu disse com uma coragem de não sei de onde tirei: “Pode me matar, mas este sou eu e vou ser assim para sempre”. Estávamos os dois cansados e chorando, por conta do embate quase que diário sobre eu ser quem eu era e ele não aceitar, até hoje, quem eu sou.

Vejo com preocupação o que alguns chamam de brincadeira ou pensamento retrógrado. São muitos os jovens mortos, que se matam, ou que saem de casa, como eu fiz em seguida, por conta de palavras ou agressões. Palavras matam, aos poucos, mas matam e dificilmente se apagam da memória de quem foi vítima.

Hoje, o meu relacionamento com meu pai é distante, apesar de termos superado entre nós este episódio. Foram anos de terapia e mais brigas, até que eu aprendesse que teria que abrir mão de um contato com o pai que eu amo, simplesmente por me fazer mal olhar para seu rosto. As crises de choro foram constantes, aprendi a chorar por dentro. Me considero uma vítima da homofobia sim. Se você acha que é mi mi mi, não imagina as outras situações que eu já passei e passo na vida.

Escolhi lutar, todos os dias, para que novos jovens não passem pelo que eu passei. Raramente cito este momento da minha vida e ponderei bastante antes de me expor. Mas é claro, para mim, que a liberação de armas e a relativização de preconceitos com homossexuais e pessoas trans é um risco grandioso e iminente. Bem como o combate às políticas de direitos humanos a qual me agarrei desde aquele dia.

Acredito que todos podem evoluir mas a aceitação não tem nível, não é por meio de palavras que ela se manifesta, ela é sentida na forma de amor. Um dos meus projetos que criei é exatamente sobre as relações de pais e filhos LGBT. Ainda hoje ouço relatos de palavras e violência contra LGBTs partindo dos próprios pais. As pessoas não sabem o quanto causa feridas a falta do amor incondicional, a rejeição. Quando escrevi o projeto Laços de Família, marquei ele com uma frase que externa o cerne da questão: “É um conflito de sonhos. Os pais sonham com o filho idealizado e os filhos sonham com o amor dos pais por quem eles realmente são”.

Enquanto continuarem as “brincadeiras” e comentários, até o menor deles, nunca um filho se sentirá amado incondicionalmente. Alguns pais e parentes de LGBTs não entendem que o voto no candidato que nos fere em existência. Não sou o único sentindo isso. Alguns LGBTs até votam no candidato homofóbico. Pois dentro da própria comunidade a homofobia é latente. Pois vivemos em uma sociedade que não valoriza a empatia e essas eleições provam isso.

Apesar de toda a preocupação que tira o meu sono, estou bem. Eu sobreviverei aos dias mais escuros que possam vir. Às vezes penso que naquele dia eu morri, e que desde então só venho cumprindo a minha missão, de entregar o mundo um pouco melhor do que aquele que eu recebi, algo que todos deveriam pensar em fazer.

Em tempo, meu pai tem mais de 70 anos e disse que não iria votar, pois não é mais obrigatório. Mas tivemos duas discussões sobre o tema e não me surpreendi dele dizer que votaria no Bolsonaro.

 

Allan Johan :O jornalista Allan Johan é fundador da Revista Lado A, militante LGBTI e primeiro Coordenador da Diversidade Sexual da Prefeitura Municipal de Curitiba entre março de 2017 até maio de 2020.