João W. Nery deixa esposa, filho e um legado de luta e ativismo

O ativista trans, psicólogo e escritor João W. Nery, de 68 anos,  morreu nesta sexta-feira (26) em decorrência de um câncer no cérebro. Ele deixa a esposa Sheila Saleswi, um filho, e uma legião de pessoas que o consideram um pai. A doença começou no pulmão e em 2017 ele anunciou que o câncer atingiu o cérebro. Em 21 de outubro, o ativista chegou a gravar um vídeo que postou em suas redes sociais, anunciando que estava sendo bem tratado no Complexo Hospitalar de Niterói, no Rio de Janeiro.

Ao anunciar que o câncer do pulmão havia atingido o cérebro, Nery fez um apelo nas redes sociais. O escritor  pediu para que os homens trans continuem a luta, que se unam e deixem de excluir os outros, o que a transfobia já faz diariamente. “Um transmasculino não precisa ser sarado, nem ter barba, nem se hormonizar ou ter pênis e se operar. Basta saber quem são e que se sentem do gênero masculino. Vamos nos respeitar, nos unir, nos fortalecer e, sobretudo, ensinar aos homens cis o que é ser um homem sem medo do feminino.”, disse.

Dentre as obras que escreveu, um livro está prestes a ser lançado, previsto para 2019. Durante seu tratamento, não deixou de se dedicar ao último livro sobre pessoas trans e a velhice. A obra intitulada “Velhice Transviada” conta também a história do próprio ativista e sua relação com a terceira idade. Nery também é autor das obras “Viagem Solitária” e “Vidas trans: a coragem de existir”.

Transição

Até os 27 anos de idade, João Nery viveu condicionado à um corpo e documentos femininos. Durante a infância, como muitas pessoas trans, não conseguia entender os motivos de ser tratado no feminino. Gostava das brincadeiras consideradas masculinas, e tinha verdadeiro horror por vestidos, penteados e maquiagens.

A criança sonhava com o dia que se tornaria um menino de verdade. Distante das outas crianças, procurava fazer do seu quintal o seu espaço de diversão. Ali, se sentia protegido do bulliyng e podia ser ele mesmo, um menino. Ao mesmo tempo, a família dizia que era uma fase, e que um dia se tornaria uma moça, palavras que se tornaram um pesadelo para ele.

Sua transição começou ainda aos 26 anos. Mesmo com a dificuldade da época, conseguiu alterar seus documentos para que apresentassem nome e gênero masculinos. O psicólogo chegou a ter dois documentos de CPF, o que implicou alguns problemas com a Justiça. Na mesma época, começou o tratamento hormonal, mesmo sem saber dos riscos, pois pouco se falava sobre hormonização e transexualidade na época.

Em meio à ditadura militar fez a cirurgia de mamoplastia masculinizadora, isto é, retirada dos seios. O útero e as trompas também foram retirados. O procedimento era considerado crime e o médico que o operou foi condenado a dois anos de prisão, não pela cirurgia em Nery, mas sim em uma mulher trans em 1971.

João Nery conseguiu mudar de nome se apresentando para tirar outra certidão de nascimento, como se nunca fosse registrado. Na época, conseguiu retirar os documentos, mas perdeu todo o seu histórico profissional e acadêmico. Enquanto era visto como mulher, tinha um consultório, dava aula em três universidades e fazia mestrado. Ao não ser reconhecido enquanto homem pelo Estado, se revoltou e não fez todo o processo de estudos novamente.

Ativismo

Sem a profissão que o sustentava, Nery trabalhou como  pedreiro, pintor, terapeuta corporal, chofer, entre outras profissões. Durante esse processo, nunca deixou de lutar pelo direito de pessoas trans, tanto que se tornou uma referência na luta pelos direitos humanos. Em 2011, publicou o livro “Viagem Solitária” com uma grande repercussão que o lançou como grande ativista LGBT.

Nos anos finais de sua vida João Nery foi muito consultado e citado por intelectuais e políticos. O nome de João Nery batiza um projeto de lei muito importante para a comunidade trans. De autoria dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF), a PL 5002/2013 versa sobre a desburocratização no processo de mudança de nome e gênero.

Sua história também serviu de inspiração para o personagem Ivan, da novela “A Força do Querer” de Gloria Perez. O jovem enfrenta todo a transfobia e o preconceito da família por ser um homem trans. Assunto ainda pouco debatido no Brasil, a transmasculinidade foi discutida na novela de Gloria Perez que procurou Nery para montar o personagem.

 

Redação Lado A :A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa