Já dizia o Barão de Montesquieu: Se os triângulos tivessem um Deus, ele teria três lados. E a nossa sociedade construiu um Deus, à sua imagem e semelhança. Tradicionalmente utilizado como poder de persuasão, o Deus da Humanidade tem moral e semelhanças físicas da classe dominante.
Causa indignação para muitos quando algum artista retrata um personagem religioso de forma polêmica ou fora do tradicional. Seja nas capas de charge do Charlie Habdo, uma peça com Jesus travesti, ou no especial de Natal do Portas dos Fundos, as pessoas brandam falta de respeito às suas religiões.
Ora, religião se faz por adesão e todos devem respeitar a religião do outro, mas é preciso entender inclusive o direito à produção intelectual e direito à crítica. Não gostar faz parte, ofender-se é opcional, se apropriar do produto divino é direito de todos. Não há problema em ter um Jesus ou Deus gay, negro ou travesti. Aliás, se não há provas que Jesus ou Deus eram gays, também não há provas que eram heterossexuais.
A gente entende que assim eram por convenção da maioria, por idealização de um padrão imposto. Aliás, a monogamia da sociedade (do homem, é claro) é recente, antes a poligamia era tolerada pelas três grandes religiões. A arma de manipulação da religião instituiu vários costumes, por conta da oportunista intervenção divina. Padres não podem casar, gays não podem casar, mulheres devem ser submissas, o pai é o chefe da família, entre outras máximas do patriarcado ocidental.
Como ninguém tem procuração divina e direito autoral sobre as obras, elas são passíveis de interpretação e manipulação, para quem quiser.
Quando se fala em tolerância e amor universal, estes princípios devem ser evocados também, principalmente, quando algo nos desagrada. Releve se algo te atingiu, repense porque isso te incomoda, dê a tal da outra face, perdoe o pecador. Certamente o teu Deus poderoso não precisa da sua ajuda para se defender.
O especial de Natal em si é mais ofensivo aos gays do que aos cristãos se for analisar seu final. Alerta de Spoiler (não leia, se não quiser saber o final): o gay afeminado e assumido (Orlando) é Lúcifer ao final e trai a todos que conquistou. Jesus, enrustido na obra, é o herói derrotando Lúcifer e a história posterior todo mundo conhece.
A fé deve ficar dentro das pessoas e no culto nas igrejas. É comum vermos as pessoas transformando sua fé em identidade, favorecendo sua crença como verdade imutável em um mundo cheio delas. Tudo bem, desde que não menospreze a fé ou a falta de fé alheia. Nada deveria abalar a sua fé e quem acredita deveria passar indiferente quando vê alguém criando a própria interpretação, seja para satirizar, seja para seguir. As pessoas demonstram a fé de formas diferentes, cada um tem a sua.
No final, é o nosso mesmo Deus, seja o nome que o chamam, a cor que pintaram, e com quantos lados cada um decidiu que ele teria.