O preço de ser diferente…

Redação Lado A 15 de Agosto, 2006 23h54m

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Zara Schnauzer


Este é o título de um dos últimos romances espíritas que li. Trata do homossexualismo e das batalhas que precisamos travar diariamente para não sermos massacrados por uma sociedade repressora. Inspirada ainda pela bela história do livro, por acreditar que a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória e motivada por uma pergunta feita a mim na última semana, resolvi escrever o artigo sobre isso… “Como foi que você se descobriu?”


Como é estranho quando nos perguntam isso. Entendo que a pergunta não deveria ser essa, mas sim: “Quando você se assumiu?” Não nos descobrimos lésbicas. Assumimos para nós mesma antes de qualquer coisa que gostamos de mulheres.


Tinha 16 anos, quando olhei para dentro de mim pela primeira vez. Era estudante do ensino médio, a mais velha entre três filhos. Os dois mais novos eram meninos. Meu pai, economista, minha mãe empresária. Uma família normal, não fosse o fato do meu irmão do meio, apresentar tendências homossexuais desde o nascimento e meus pais não admitirem isso. Vou resgatar um pouco desta história para contextualizar a minha própria história. Tratavam o menino com uma delicadeza fraternal. No entanto, essa proteção era restrita ao lar. Então quando íamos a escola a recomendação era feita a mim, a mais velha, para que cuidasse do meu irmão. Eu cuidava. Quanto mais crescíamos mais se tornava necessária minha intervenção quando meu irmão tinha problemas. Ele era sensível, delicado, não gostava das brutalidades dos outros meninos. E isso já incomodava os outros. Em função disso fui expulsa da primeira escola. Bati em um menino que estava ofendendo verbalmente meu irmão. Essa foi só a primeira briga e a primeira escola. Sempre defendi meu irmão, sempre acreditei nele. Dos três filhos com certeza o mais comunicativo, o mais inteligente, e também o que sofria mais. Mesmo pequeno ele percebia a incompreensão dos nossos pais. Eles não eram capazes de entendê-lo.


Então voltando a minha história. Aos 16 anos no 2º ano, estudante do magistério. No meio do ano letivo uma professora entrou em licença maternidade e a escola logo a substituiu. Então no primeiro dia letivo do segundo semestre entra na sala de aula a nova professora de didática de português. Uma jovem de 26 anos, magra, cabelos longos, ondulados, castanhos, um sorriso contagiante. Estranhamente aquele sorriso não me cativou, subitamente senti uma aversão àquele sorriso, àquela mulher tão bonita. Como líder e representante da turma eu exercia uma certa influência sobre minhas amigas, e logo todas as meninas da sala estavam odiando a substituta. Passamos dois meses assim, hostilidades de toda uma turma de 35 mulheres contra a jovem professora. Em outubro chega o meu aniversário e, surpreendentemente, ela vai até a porta da minha sala de aula, me chama e entrega um cartão de aniversário. Escreveu coisas lindas sobre amizade! Eu me senti uma idiota. E ela certamente alcançou seu intento. Não dizem por aí que se você não pode vencê-lo, junte se a ele? Foi o que ela fez. Desarmou-me. Depois disso os dias no colégio pareciam muito mais agradáveis. Eu ia para aula feliz por saber que ia vê-la e conversar longamente com ela como fazíamos todos os dias desde o meu aniversário. Chegou o fim do ano e eu fui para a praia com meus pais como sempre fazíamos. Cheguei em dezembro e lá experimentei pela primeira vez na vida a lastimável depressão. Sem que eu soubesse que estava assim, e sem que minha família percebesse minha mudança de comportamento, passei os dias surfando muito, do amanhecer ao anoitecer. Em determinado dia encontro a professora, percebo que fico pior do que antes, cada dia mais triste, sem entender o que acontecia comigo.


Porque aquela mulher despertava sentimentos estranhos em mim? Ela era casada, tinha dois filhos. Contava-me coisas sobre sua vida como se eu tivesse a mesma idade que ela, era muito estranho! Eu sentia essas coisas e ela com certeza alimentava esses sentimentos. E para quem já vinha de uma história com um irmão gay, me vi sem qualquer coragem para enfrentar esta situação!


Quase no fim das férias meu irmão mais novo resolve sair com uma menina que também surfava comigo. Como ele era mais novo do que eu, minha mãe só consentiria se eu fosse junto. Minha amiga disse que o primo dela também iria.  E eu, sem a menor vontade de socializar-me, fui. Conheci o tal primo, ficamos, e começamos a namorar. Pensei que dessa forma eu conseguiria esquecer a história maluca com a professora. Um grande erro. A cada dia o namoro ficava mais sério. A cada dia ela se aproximava mais de mim. Dia dos namorados e ficamos noivos. E pela minha cabeça passava que esta era a solução para o meu problema. Fim do ano. Formatura. E ela lá. Sempre presente.


No outro ano eu me casei. E ela? Minha madrinha de casamento.


Muitos anos se passaram. Precisamente 14 desde a última vez que vi a minha professora. Enquanto isso, me assumi. Conheci pessoas, tive relacionamentos. Fiz aquilo que deveria ter feito aos 16, mas não tive estrutura para isso. No início deste ano pretendia colocar minha filha no mesmo colégio em que havia estudado. Chego ao colégio para conversar com a orientadora. Minha grande surpresa: era ela, a minha professora a orientadora da escola.


Ela me pergunta se estou namorando, respondo que sim. Estranhamente, como se soubesse de tudo me diz: Está feliz? Eu respondo que agora sim, dando a entender que havia alguma mudança em mim. Ela me responde em um tom firme que às vezes na vida é preciso passar por coisas ruins para depois podermos desfrutar da felicidade verdadeira. Eu olhei para ela devolvendo o tom firme e disse: você sabia de tudo, e não fez nada para me ajudar? Ela disse que há coisas na vida que as pessoas precisam passar sozinhas! E eu disse que precisávamos marcar um café, porque a partir daquela conversa eu percebi que ela precisava ouvir algumas coisas. Nunca fiz isso. Resolvi escrever este artigo!


Achei uma sacanagem. Poderia ter evitado tantos sofrimentos na minha vida. Tinha até certa obrigação de ter conversado sobre isso comigo, já que é academicamente preparada para tanto. Além de ter uma obrigação profissional, ela tinha obrigação moral, pois durante dois anos alimentou esses estranhos sentimentos que eu certamente deixava claro que existiam.


Juridicamente falando, poderia processá-la por imperícia. No entanto, os momentos difíceis me fizeram uma pessoa melhor. Uma vez, esta professora me disse, você fez tudo igual a mim na sua vida, se casou aos dezoito anos, aos dezenove foi mãe, fez faculdade de pedagogia, só fez uma coisa que eu não tenho coragem, separou do marido. Eu respondi que era muito mais feliz assim, estar casada com aquele homem não era o que eu queria. Certamente não era. Depois de todos estes anos ao encontrá-la pude perceber que ela ainda não é feliz. E embora tenha me sentido sabotada por ela, gostaria que ela também se assumisse, não que ache que ela é lés, mas que assuma que não é a fim de ficar com aquele homem. Eu cresci, mudei, sou feliz. Paguei o preço de ser diferente muitas vezes, mas valeu a pena, e continua valendo muito a pena a cada nova conquista.


Vi meu irmão passar pelo sofrimento da incompreensão. Passei pelo mesmo problema. Mas acredito que o mundo felizmente está mudando, evoluindo, chegando a uma plenitude em que a sexualidade das pessoas não será questionada. A geração da minha filha, os adolescentes do momento, já tem esta visão, gostar de meninos ou meninas não importa, o que importa é ser feliz!


Lições da semana:
– Se você está se assumindo, um dia terá orgulho de contar a sua história.
A propósito, me conte a sua história… quem sabe pelos meus olhos não se torna um artigo!
– Quando estamos namorando, os conflitos são inevitáveis.
– Se estiver em um conflito, mantenha-se lúcida. Afinal para a relação durar: alguém tem que ceder!


A pergunta que não quer calar: Quanto tempo a gente tem que ter de namoro pra poder casar? Já estou querendo!


A música é do Red Hot Chili Pepers – Tell me baby (em homenagem a uma grande amiga)


Para ler: o blog do Allan. E ficar muito ligado no que rola na política, afinal, teremos que escolher nossos representantes.


Opiniões e sugestões escreva para zaraschnauzer@gmail.com

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SOBRE O AUTOR

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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