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Anedota Fálica

Arthur Virmond de Lacerta Neto 11 de Setembro, 2017 02h24m

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Chama-se de anedota a narrativa breve, relativa a fato real ou fictício e não necessariamente hilária. Chamo de anedota fálica a narrativa breve, relativa ao falo (sinônimo de pênis ou pinto) e, consoante a sensibilidade do leitor, risível, burlesca, tola, de mau gosto, brejeira, inútil ou como queira cada um qualificá-la: ela admite todos os adjetivos e é passível de valoração por distintas sensibilidades. Pretendo que esta seja edificante, na medida em que se presta a motivar reflexões.
O seu protagonista, chamo-o de Varão, por tratar-se de homem. Pudera apodá-lo de Macho, do que desisti, para não lhe atribuir caráter nem machista, tampouco sexual. Ao contrário, o teor da anedota é angelical.
 
Varão freqüenta ginásio ou (na dicção brasileira) academia de ginástica, em que pratica o exercício denominado de abdominal: o ginasta deita-se, estira-se em decúbito dorsal (de costas para o chão) e contrai o abdômem, mediante a projeção do tronco para a frente. 
 
Varão praticava cinqüenta (faço questão do trema) movimentos abdominais, divididos em cinco séries de dez repetições; ao cabo de cada série, interpunha alguns segundos de repouso, em posição sentada.
Varão vestia bermuda curta, traje apropriado para a atividade física.
 
Eis que uma vez ao menos, ao sentar-se com as pernas flexionadas, expôs-se, fortuita e inadvertidamente, por fora da sua bermuda e da sua cueca… o seu falo ! (Falo é sinônimo de pênis ou pinto. Há outros equivalentes coloquiais, e chulos.).
O falo de Varão achava-se flácido; não era volumoso nem excessivamente alongado nem vistoso (haverá quem lhe lamente tantas deficiências). Se era fanado ou intacto, irreleva.
 
Dada a dimensão (então) diminuta do pênis do Varão e que este vestia cueca e bermuda, a exposição do primeiro foi e somente poderia ser discreta e pouco perceptível. Ela ocorreu tão natural e involutariamente,  que Varão despercebeu achar-se desvelada parte do seu pinto.
 
Nas proximidades imediatas achava-se o proprietário da academia: ele viu o pinto parcialmente exposto, o que comunicou ao gerente do estabelecimento que, por sua vez, reportou o fato ao Varão que, de pronto, atinou com a situação embaraçosa criada pela diminuta e inintencional exposição de menos da metade da sua murcha piroca (oh ! Que palavra! Que hei de fazer ? É para evitar repetições.).
 
Entendo que o proprietário possa e deva zelar pelo decoro, pela “moral e pelos bons costumes” vigentes no seu estabelecimento; que se deve poupar os circunstantes de vexames desnecessários; que em cada ambiente há comportamentos apropriados; que certas pessoas chocam-se com a vista de pênis; que há lugar e momento próprio em que ele possa ser desvelado; que o exibicionismo é censurável (não houve exibicionismo.). Varão também percebe tudo isto. 
 
O gerente do ginásio, em jeito de pastor, apascentou o Varão, para que este, vindouramente, praticasse o exercício de abdominais voltado para a parede, a fim de se premunir que, novamente, o seu pinto se descobrisse, na presença da gente pudica ou de qualquer gente.
 
Houve exposição de pênis flácido, de tamanho regular e não avantajado. Ela resultou de movimentos de execução necessária; foi inintencional, fortuita, breve e discreta. O Varão não a percebeu. Malgrado tudo isto, ela motivou a intervenção do proprietário da academia.
 
Diálogos possíveis:
 
-“Ninguém é obrigado a ver o pinto de ninguém !”. Foi inintencional; demais, não olhasse.
-“Academia não é lugar de mostrar o pau !”. (linguajar que não o meu.) Não o mostrou: ele se expôs fortuitamente.
-“É lugar em que há mulheres e até senhoras !”. O que é que tem ? Houve tentativa de estupro ?
-“Tem de estar trajado adequadamente em cada lugar.”. Acaso não o estava ?
-“Que pouca vergonha !”. Vergonha do corpo ?
-“Se um homem mostrasse o pinto para a sua filha, o senhor iria gostar ?”. Quem tem de gostar ou não é ela.
– [Etc.]. [Respostas à altura.].
 
Por que a exposição fortuita, efêmera, inocente e parcial do pênis motivou a reação do proprietário do estabelecimento ? Por que o desvelamento, ainda que acidental, do pênis motiva tal tipo de reação ? Que mal intrínseco ele contém ?
Mal intrínseco, ele não contém nenhum, exceto se ereto e em vias de estuprar alguém. Fora desta condição manifestamente ofensiva e indesejável, ele é orgão como qualquer outro; é parte do corpo como qualquer outra e tão inocente quanto qualquer outra.
 
O caráter (no entendimento de muitos) inconveniente e censurável da sua exposição deve-se à herança arcaico-cristã (trivial e erroneamente conhecida por judaico-cristã) que ainda permeia o etos de muitos brasileiros, como produto da lenda de Adão e Eva, aliás enganosamente interpretada. 
 
O cristianismo criou a misofalia e a misomamia, ou seja, respectivamente, a censura do pênis e das mamas, no âmbito geral da repressão sexual sexualidade e da gimnofobia (recusa da nudez). 
 
Nas populações cristianizadas, falo e mamas são estigmatizados e ocultados. Não compreendo porque os orgãos alimentares que propiciam leite à criança, são reputados obscenos e devem ser velados, como indecorosos. Não compreendo porque o pênis, orgão excretor e reprodutor, é reputado obsceno e deve ser velado, como indecoroso.
 
Correlatamente, o cristianismo incutiu nos cristãos o pudor (vergonha do corpo), a gimnofobia (horror da nudez) e a malícia. Se a malícia se encontra mais ou somente no espírito do malicioso, que o criou e lho incutiu, foi o cristianismo que, concomitantemente, criou o pudor ou, ao menos, fortaleceu-o talvez mais do que qualquer outra fonte. 
 
Sem a malícia, sem o pudor, sem a herança cristã, a exposição mamária, por exemplo, nas praias e em piscinas, seria indiferente. Nas populações cristianizadas, ela (ainda, como no Brasil) é motivo de recusa ou de alvoroço: o proibido, quando se revela, desperta a atenção, pelo seu ineditismo. Rapidamente, porém, perde a graça: o visto, já visto e revisto, torna-se indiferente.
 
Sem a malícia, sem o pudor, sem a herança cristã, a exposição peniana, nas circunstâncias da anedota, teria passado despercebida, teria merecido indiferença ou, talvez, curiosidade por ver-se o que anda oculto. Da parte de alguém teria, quiçá, despertado apetite venéreo, por conta muito mais da imaginação e da libido do observador, do que da parte observada. Sem a malícia e o pudor cristãos, o episódio teria sido interpretado como irrelevante ou pouco relevante. Por efeito do etos cristão, redundou  na intervenção do proprietário da academia e no constrangimento de duas moças, que se exercitavam, no chão, ao lado de Varão.
 
Faz sentido distinguirem-se no corpo regiões decorosas de outras, indecentes ? Não, não faz. Há, no corpo, partes obscenas por natureza ? Não, não há. O corpo é, por inteiro, digno ? Sim, é-o. A vergonha do corpo faz sentido ou não ? Não, não faz. Faz sentido a moral arcaico-cristã, em relação ao corpo, no sentido manifestado pela anedota ? Não, ela não faz sentido e deve ser abandonada: destabuzar (erradicar o tabu) o corpo, a nudez, as mamas e o falo, e naturalizá-los (interpretá-los como naturais).
 
Não estou a preconizar que nas academias se autorize a exposição intencional ou fortuita do pênis, em maior ou menor proporção. Estou a examinar o etos pudico e a herança arcaico-cristã, na sua vertente misofálica (e, por extensão, misomamária e gimnofóbica. Misofalia significa recusa do pênis ou da sua exposição; misomamia significa recusa das mamas ou da sua exposição; gimnofobia significa recusa da nudez ou da sua exibição; nos três casos, deliberada ou fortuitamente.).
 
Quem me acompanha os artigos, já me conhece tais juízos; estou a dizer mais do mesmo. É, contudo, a propósito de episódios aparentemente pífios como este, que devemos refletir e usá-los como pontos de partida para a revisão dos valores, para a renovação dos conceitos e para a modificação dos comportamentos. 
 
À anedota e aos juízos que formulei, cada qual reagirá conforme o seu etos e a sua idiossincrasia. A reação revelará muito do estado axiológico de cada reagente e da sua cosmovisão.
 
Oh, Apolo nu! Oh, Mercúrio, deus dos ginásios ! Oh, Hércules, criador das Olimpíadas ! Oh, gregos, atletas e ginastas nus ! Não fosteis cristãos ! (os atletas disputavam os jogos olímpicos nus e nus praticavam ginástica, palavra cuja etimologia corresponde a “gimnadzein”: treinar pelado. Treinavam sem escândalo, sem pudor, sem malícia, com o pinto à mostra, por inteiro.).
 
 
Arthur Virmond de Lacerta Neto

SOBRE O AUTOR

Arthur Virmond de Lacerta Neto

Arthur Virmond de Lacerda Neto é jurista, filósofo, advogado, professor e escritor de sucesso. Nascido em Portugal, ele reside atualmente em Curitiba, e é colunista da Lado A desde 2007.

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