Um conto sobre a parada Gay

Redação Lado A 25 de Outubro, 2019 15h19m

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Muita gente questiona a necessidade de se fazer uma parada gay. Pessoas boas. Dessas que ouvem Pabllo Vittar. Que gostam de cabeleireiro gay. Que assistem pornô lésbico. Mulheres que treinavam beijo com as amigas na adolescência. Homens que adoram divas pop. Que assumem que até pegariam a Pabllo Vittar. São os simpatizantes, sim, aqueles da velha sigla GLS. Aqueles que até têm amigos gays, mas que realmente não veem necessidade de sair esfregando isso na cara das pessoas. Que não tratam ninguém diferente, mas acham que gays não devem ter privilégios. Pessoas justas. Por isso, acho que é válido responder às suas principais dúvidas. Lá vai.

Rosa, 32 anos, comerciante, cuja saia jeans não combina muito com o tênis esportivo, pergunta:

– Não entendo porque na parada gay as pessoas sempre vão fantasiadas, espalhafatosas. Esses dias, mesmo, vi um homem de saia, outro vestido de unicórnio. Acho que deveriam que se dar ao respeito, né?

William, 28 anos, professor, cuja barba com glitter combina com seu arquinho de unicórnio e cuja saia de tule reluz com o brilho do sol, responde:

– O seu questionamento é muito bom. Na verdade, a parada gay da cidade faz lobby com os fornecedores de festa para liquidar o estoque que sobrou do carnaval. Menos as máscaras do Fábio Assunção, que isso é coisa de hétero. Mas, esse lance de “se dar ao respeito” é meio antiquado, que em 97, quando meu pai quebrou minha costela porque eu estava brincando com as maquiagens da minha mãe, usou esse mesmo bordão. Se atualize, mona!

Oswaldo, 51 anos, militar aposentado, que conhece todas as lojas que ainda vendem trim e calças sociais bege pergunta:

– Ah, dizem que é um movimento por direitos, mas eu só vejo farra. Todo mundo seguindo um trio elétrico, com som alto. Tudo desculpa para fazer bagunça, até porque, a constituição garante a todos os mesmos direitos, não?

Carol, 38 anos, freelancer porque, apesar de seu MBA e de suas roupas estilosas, o cabelo curto faz com que não seja bem o perfil das empresas, responde:

– Não é bem desculpa para fazer bagunça, é tudo lobby da indústria automobilística. Veja bem, o trio elétrico é um caminhão. Ele serve para sinalizar para as sapatas caminhoneiras que aqui elas podem calibrar os pneus e trocar o óleo de suas scanias, polir a lataria, afinar a buzina. Mas em um ponto o senhor tem razão: somos todos iguais perante a constituição. Tentei argumentar isso com o juiz que anulou o meu casamento ano passado, mas ele disse que família é homem e mulher e que estava fazendo o trabalho de deus. Acho que ele não gostou muito das fotos do meu caminhão estacionado em frente ao cartório.

Alex, 30 anos, personal trainner na academia que ganhou do pai quando se casou, pai de família que tem foto das filhas na capa das redes sociais, pergunta:

– Aqui na minha cidade, a parada se chama parada do orgulho L-B-C-G- T? S? Ah, tem aquele monte de letra, mas é parada do orgulho gay, sabe? Eu não sei porque alguém tem orgulho de ser gay. Eu mesmo, nunca tive orgulho de ser hétero. Não somos todos iguais? Por que gay tem que ter orgulho?

Gabriel, 30 anos, maquiador, que não pode colocar foto de capa do casamento nas redes sociais porque pode perder clientes e quer adotar crianças, mas já foi hostilizado por dois assistentes sociais, responde:

– Realmente, não há de que se ter orgulho. Pelo contrário, nossa vida é uma grande vergonha. Era vergonha que eu sentia quando era criança e apanhava todo dia na escola para deixar de ser bichinha. Daí tomava bronca em casa por ser frouxo e não me defender. Quando era adolescente e vivi meu primeiro amor, também foi uma vergonha. O pai dele descobriu, me ameaçou de morte, contou para o meu pai. Ele foi mandado pra uma escola militar. Eu fui expulso de casa. Dormi na rua umas vezes, vergonhoso. Trabalhei por comida. Fiz carreira. Venci. Mas ano passado, me casei e nenhum parente foi à cerimônia. Nem minha mãe. Meu pai não deixou ela fazer essa vergonha de celebrar a felicidade do filho. A parada deveria se chamar Parada da vergonha gay.

Norma, 70 anos, jornalista aposentada, que após tomar umas broncas na ditadura, porque era de boa família, passou a escrever apenas sobre trivialidades, mas hoje acha que intervenção militar é uma boa, pergunta:

– Tenho a impressão de que os gays têm preconceito contra os héteros. Querem que seja tudo sobre eles. Beijo gay na novela. Só falam de gay na mídia. Não é mais importante lutarmos pelos direitos humanos, ao invés de lutar pelos direitos de um segmento específico?

Sônia, 65 anos, comerciante, sem previsão de aposentadoria porque nunca foi registrada, responde:

– Sim, acho que temos que lutar pelos direitos humanos, não só sobre os direitos dos gays. Precisamos lutar pelo direito dos humanos em geral! A nossa luta não vai acabar até que os adultos que se amam possam se casar com direito à festa, à alegria, um problema recorrente entre os héteros. Outro problema humano que precisamos resolver é o medo de andar de mãos dadas com seu cônjuge na rua. Tão recorrente um rapaz e uma moça de mãos dadas sofrerem espancamento. Sofrerem estupro corretivo. E a aceitação da família? Temos que trabalhar esse drama hétero. É tão desesperador quando um rapaz hétero vem apresentar a primeira namorada para os pais. Ouve absurdos, como: “esse é meu garoto, garanhão igual ao pai!”. E quando a moça hétero conta para a família que foi pedida em casamento? Ouve coisas dramáticas como: “finalmente meu sonho vai se realizar! Vai se vestir de noiva! E eu ainda ganhei um filho, não só um genro!”. Não vamos parar de lutar até que essas pequenas coisas se tornem direitos humanos.

Camila Mossi é gaúcha, cronista, lésbica, casada com a Nádia, amor da minha vida. Seu maior sonho é conhecer o Verissimo e convencê-lo de que é sua filha. Doutoranda em Letras pela UEM, mestre, especialista e licenciada em Letras pela UEL. Pedagoga pela Unifil. Ministra palestras e oficinas de escrita criativa e de incentivo à leitura. Autora premiada, adora receber e-mails: camilamossi@yahoo.com.br

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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