Eu e o HIV

Redação Lado A 30 de Novembro, 2006 15h19m

COMPARTILHAR



Sou portador há dezessete anos. O HIV entrou na minha vida pela porta da frente. Não bateu e nem pediu licença, simplesmente foi entrando e se acomodando. Convivemos juntos até hoje. Da minha parte, estamos nos dando muito bem. Infelizmente não aconteceu o mesmo com meu primeiro companheiro.


Tive um relacionamento de dez anos com o meu primeiro companheiro. Foram altos e baixos, brigas, lutas, amor e também desamor da parte dele. Sempre tive esperança de vencer todos os obstáculos até que quando prestes a completar quatro anos, entrou este “bichinho” nas nossas vidas.
 
Foi através de uma internação do meu companheiro que tive o primeiro contato com o vírus. Foi a noite mais horrível de minha vida. Por incrível que pareça, a noite estava simplesmente maravilhosa. Acredito ter sido também o meu primeiro contado direto com DEUS.


Quando saí do hospital, onde estava o meu companheiro, olhei para cima e vi uma imagem maravilhosa: um céu repleto de estrelas, coisa cinematográfica. Nunca tinha visto algo tão grandioso e lindo. O brilho das estrelas ofuscaram minhas lágrimas e clarearam meu coração. Neste momento perguntei para Deus: Porque Nós? Porque Eu?  Porque meu companheiro? A pessoa que eu tanto amava estava fugindo pelas minhas mãos com areia. Lutei tanto, contra tudo e contra todos para simplesmente acabar assim!


Pedi a Deus para que me concedesse a graça de eu também estar com o vírus, já que pedir a ele que o livrasse do vírus seria tarde e não tinha mais volta. A doença já havia se manifestado e os remédios e o tratamento na época eram difícil e totalmente precários.
 
Chorei muito. Fiquei triste, mas por momento algum fiquei chateado com Deus. Ele nos deu a vida e o livre arbítrio e eu escolhi seguir este caminho; então pedi força para suportar tudo que viria pela frente e seguir a diante.
 
Dois dias depois fiz os exames e foi confirmado que eu também era portador. A diferença era que eu não era um doente de AIDS. Mesmo assim, já me bastou para ficar ao lado de meu companheiro, mostrando a ele que estávamos no mesmo barco e que a tempestade era longa e caberia a nós remarmos juntos para não morrermos ali, sem fazer nenhuma força; afinal, com dois remando tudo fica mais fácil e a esperança de chegar em terra firme era maior.


Continuei lutando, tendo esperanças e procurando passar dignidade para meu companheiro. Por momento algum saí de perto dele.  No dia em que ele me contou que estava doente de Aids, jurei de joelhos na sua frente que nunca o deixaria, que morreria por ele e em último caso morreríamos juntos. Não pelo fato dele ser meu companheiro, mas sim por ser a pessoa com quem aprendi ser Homem. Devo a ele tudo que sou: a força, a garra, a coragem e a esperança. Foi com ele que aprendi a lutar pelos meus ideais e naquele momento em que ele estava vulnerável… deixa-lo, não.  Não foi o que ele me ensinou e também tenho a certeza que ele não faria isto se ele estivesse no meu lugar.
Com todos os problemas, todas as noites, sempre agradecia a Deus por mais um dia e se fossemos merecedores, que nos concedesse mais um… e assim por diante.


Da descoberta até sua morte passaram seis anos. Neste período, não deixei de ter fé por nenhum minuto e à medida que o tempo passava, Deus ia me respondendo aquelas perguntas que fiz lá atrás….Por que nós? Por que eu? Por que ele?  Foi para me mostrar um outro lado da vida; me fazer ser mais humilde perante as pessoas e os obstáculos; me fazer prestar mais atenção aos problemas dos outros antes de me queixar dos meus;  Reclamar menos, sorrir mais; Pedir só aquilo que eu possa carregar; olhar a natureza ao meu redor, sentir a brisa, o vendo a chuva o sol e dizer em alto e bom som… Deus está presente!!!


Mesmo com tudo isto, ainda estou aprendendo. Com meu atual companheiro, estou começando a ser mais flexível. Não posso achar que ele é meu, prende-lo vigia-lo só faz mal a mim mesmo.


Não somos donos de nada, nem material e muito menos espiritual. Quando retornamos de onde viemos, deixamos tudo para trás. Até nossa matéria (corpo), não é nossa, é uma roupa que ficará quando retornarmos para casa eterna.
 
Ultimamente procuro me vigiar, me segurar e me auto-analisar antes de disser algo, procuro ser feliz hoje, pois o amanhã a nós não pertence.


Continuo pedindo a Deus mais um dia e nunca deixando de agradecer pelo dia que passou e por tudo que ele tem me ensinado; pela força, pelos amigos e também por ter colocado em minha vida meu atual companheiro Édson, o meu Little, como o chamo carinhosamente.
 
Ele faz por mim o que eu fiz pelo meu primeiro companheiro. Felizmente não estamos no mesmo barco, ou seja, ele não é portador. Espero e peço a Deus que ele nunca tenha a mesma intimidade com o HIV.


Ele já abriu mão de muitas coisas boas na vida dele para ficar ao meu lado. Vai comigo em minha médica e com paciência presta atenção na consulta como se ele fosse o paciente. Não tem vergonha de buscar os meus remédios na Saúde; Me acompanha de cabeça erguida nos meus exames e quando digo a alguém que sou portador, ele me apóia e compra qualquer briga  para me apoiar. Ele sabe mais sobre os meus remédios do que eu. Lê atentamente as bulas para saber sobre os efeitos colaterais, controla meu colesterol, meu CD4, minha carga viral e vibra quando os exames apresentam bons resultados, pois para ele é uma grande vitória com louvor.
 
Temos muitos guerreiros ao nosso lado, o coquetel, que hoje é bem mais diversificado com mais possibilidades de combinações de tratamento, assistência de Planos de Saúde, profissionais se aprimorando dia a dia sobre o assunto. Eu com tudo isso, felizmente, continuo não tendo a doença, apenas o Vírus.
 
Mas como nem tudo é perfeito, Infelizmente, temos um grande vilão que é os efeitos colaterais. Como as drogas estão mais fortes, nos prejudicam mais; Temos que combater os efeitos com outras drogas; é horrível, mas é tem solução.


Um amigo me perguntou como é ser HIV positivo… E eu o respondi assim…
Você quer saber como é ser HIV positivo? Bom, como sou portador há dezessete anos, hoje para mim já é normal. Felizmente sou assintomático, não tive nenhuma doença oportunista e com isto, fora o coquetel tenho uma vida normal e sem neuras.
 
Percebi que a melhor maneira de lutar seria me aliando ao vírus, ou seja, conversei muito com ele, o chamo de ‘amigo invisível’. Coloquei medo nele. Disse que não seria nenhuma vantagem para ele que eu morresse. Se eu morrer, ele também morreria. Combinamos de que eu tomaria alguns remédios só para fortalecer “o nosso corpo”. Longe de mim querer eliminá-lo, pois com ele eu aprendi muitas coisas boas. Aprendi a dar mais valor à natureza. Reclamar menos, agradecer mais. Não ter presa. Viver cada dia como se fosse o último e acordar no outro, feliz por não ter sido. Ficar encantado com o pôr-do-sol e maravilhado com o seu nascer. Com uma borboleta voando, com as flores, a chuva, o vento, enfim, como tudo é simples e ao mesmo tempo valioso para o nosso dia a dia.


Como eu poderia ter coragem de exterminar uma coisa tão “insignificante”, monstruosa e ao mesmo boa por ter me dado esta nova chance de rever meus conceitos? Acho que é isto. Ser HIV positivo é como diz a palavra: Hoje Irei Viver Positivamente…
 
É isto, este é um pequeno resumo de minha trajetória com o HIV. Minha vida atual e tenha a certeza que sou muito feliz, por tudo que passei e por ter como prêmio este anjo ao meu lado que se chama Édson.



 

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

COMPARTILHAR


COMENTÁRIOS