Garoto de programa

Redação Lado A 14 de Maio, 2007 08h17m

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Garoto de programa ou, do francês, michê (“miché”), significa prostituto, o homem, moço geralmente, que se dedica à prostituição.

Tanto quanto o meretrício feminino, o masculino parece encarnar uma constante na história: terá sempre existido, embora em proporção acentuadamente inferior àquela. Ambos resultam, em regra, da necessidade financeira de quem se dedica a este tipo de atividade: a carestia individual, o desemprego, a ausência de perspectiva de futuro em um trabalho melhor, o desespero, levam homens e mulheres, moços, a venderem o uso concupiscente que terceiros fazem-lhe do corpo.
A existência da prostituição indica situações pessoais de extrema necessidade financeira agravada com a inexistência de alternativas imediatas de subsistência: onde há prostituição, há, em regra, dramas pessoais de penúria.

Embora a prostituição exista, ou seja, embora haja a quem satisfaça e, portanto, perante quem  apresenta uma utilidade física e porventura psicológica, ela censura-se na nossa sociedade e pratica-se à socapa, sob o temor da infâmia.

Quem a freqüenta, que não a condene; quem a condena, que não se sirva dela, por coerência. Melhor seria que ela inexistisse por inexistirem os fatores econômicos e sociais que a produzem, por modo a ninguém necessitar dela como fonte de receita, e que se lhe respeitasse a utilidade social, por modo a  dignificá-la como um serviço, útil como tantos outros.

A natureza da prostituição corresponde ao uso do corpo do prostituto ou da meretriz como simples objeto de volúpia: o cliente paga por alguns momentos de usufruto sem que, geralmente, entre os envolvidos surja qualquer relação humana, para mais da puramente libidinosa e financeira.

Fora da prostituição, a libidinagem também existe, gratuitamente, com o uso do corpo do outro enquanto mero objeto, o que, se acaso escandaliza os mais pudicos, raramente censura-se na medida em que a liberdade sexual representa um âmbito da liberdade pessoal, máxime entre solteiros, limitadamente no matrimônio.

Por isto, o estigma que incide sobre a prostituição resulta menos da concupiscência do que do aspecto comercial que ela envolve, por transformar o ser humano em mercadoria.

Eventualmente, contudo, entre o prostituto (ou a meretriz) e o seu cliente desponta uma relação de humanidade, que transcende a sexualidade e a remuneração: é quando entre eles surje, em alguma medida, a consideração do outro como pessoa: o encontro, a princípio meramente sexual, pode resultar em um encontro de pessoas, e ao seu aspecto mercantil acrescentar-se uma dimensão de respeito, de afetividade, de comiseração, de solidariedade, de preocupação, em suma, de humanidade. Afinal, cliente e prostituto encarnam, antes de tudo, pessoas, dotadas, ambas, dos traços próprios de qualquer ser humano, entre os quais os da sensibilidade e da capacidade de estabelecerem-se laços sinceros, embora, no caso deles, tais traços raramente se manifestem.

Dois exemplos desta solidariedade que ocasionalmente se estabelece entre o cliente e quem o serve, acham-se mencionados em “A questão homossexual”, de M. Oraison: no primeiro, o garoto narrou ao cliente, com demora, os dramas de infância que levavam rapazes de dezoito, vinte ou vinte e quatro anos àquela situação. A pouco e pouco, no cliente substituiu-se, ao erotismo, uma atitude de ternura, alteração que ele procurou explicar ao garoto, que, por sua vez, observou-lhe: “Bem…é porque você me respeita”.

No segundo caso, cliente e garoto parolaram demoradamente no terraço de um café. O rapaz achava-se feliz por  poder confiar-se a alguém que o escutava; ao final, o cliente, que acabou por não o ser, entregou-lhe a quantia combinada sem nenhuma prática sexual; perplexo, o rapaz exclamou que, pela primeira vez, alguém propiciara-lhe dinheiro gratuitamente; o cliente, por sua vez, recolheu-se a casa a ponderar no futuro do rapaz.

Um terceiro caso verificou-se em uma boate homossexual: ao descer a escada da sala escura (“dark room”), recinto destituído de iluminação em que se praticam abertamente todas as libidinagens,  um indivíduo deparou um rapaz, cujo tórax, definido, glabro e claro, atraiu-o. Estacou, apalpou-o com  um suave deslizar da mão sobre o seu braço, ao que o moço iluminou-lhe a face com a lâmpada do seu telemóvel.

O indivíduo propôs-lhe que adentrassem o recinto, ao que o rapaz acedeu. No interior, o indivíduo exprimiu o seu desejo de abraçá-lo e de sentir-lhe o corpo; suspeitando-o garoto de programa, perguntou-lhe se o era: era-o.
Praticaram uma libidinagem limitada a abraços voluptuosos, pelos quais o indivíduo remunerou-o com R$30,00.

Após o pagamento, travou-se este diálogo: “Qual é a sua idade?”; “Vinte”; “E estudou até que ano?”;  “Sétima série”.

O indivíduo prosseguiu-lhe, com ternura: “Por que não completa os estudos e arranja um emprego no jornal? É melhor do que esta vida. Isto não é uma vida boa para ninguém; é perigoso, há doenças. A sua mãe sabe?”.
O rapaz baixou a cabeça e respondeu-lhe: “Não”;  “Acho que ela choraria muito se  soubesse”.

O rapaz levantou a cabeça e fitou o indivíduo face a face; ao indivíduo pareceu-lhe que ele tinha os olhos marejados. “Está chorando?”; “Não”;  “Homem também chora”. O indivíduo segurava o rapaz com as mãos, ambas, nas faces dele, e o abraçou. O rapaz perguntou-lhe o nome; o indivíduo respondeu-lhe; o rapaz anotou-o no seu telemóvel e indagou-lhe: “De verdade ?”;  “Sim”.

Interrogou-lhe o número do seu telefone, que o indivíduo respondeu. Reproduziu-se a pergunta: “De verdade?”; repetiu-se a resposta: “Sim”.

O indivíduo perguntou-lhe: “Promete que vai pensar nisto?” (vale dizer, em mudar de vida), ao que o rapaz assentiu. A seguir, abraçou-o com carinho e afeição e disse-lhe: “Quero que você seja muito feliz, fora desta vida”.

O rapaz disse-se Gabriel, e separaram-se.

O indivíduo comoveu-se a ponderar nos dramas humanos que levam à prostituição. Comoveu-se, também, ao recordar-se de certo rapaz, adentrara aquela vida, por falta de opção, de perspectiva de futuro, de quem o amparasse e que aproveitou, nos anos seguintes, mesmo um pouco dramaticamente, várias oportunidades de trabalho louvável com que tentou, persistentemente, progredir na vida: desejou que  a todos os garotos de programa houvesse trabalho digno e que nenhum rapaz precisasse de prostituir-se.

 E aquele momento do diálogo, todo feito de sinceridade, de ternura, de solidariedade, e aquele momento do abraço, todo feito de sinceridade, de ternura, de solidariedade, representaram-lhe, ao indivíduo, os mais felizes  daquele dia: se não removera o rapaz daquela atividade, se não lhe ofereceu (porque não os detinha) meios alternativos de sobrevivência que lhe oferecesse, ao menos praticou o que certamente raros clientes haviam-lhe praticado: tratou-o com amor, como um ser humano e não como um objeto. Não se envergonharia de ser-lhe amigo, sinceramente.

1- Na página 146 da edição brasileira, editora Nova Fronteira, 1977. 

Redação Lado A

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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