Arquivo

Violência contra travestis preocupa ONG

Redação Lado A 04 de Março, 2009 17h48m

COMPARTILHAR


MATÉRIA PUBLICADA EM 05/02/2009 NO JORNAL FOLHA DE LONDRINA (PARANÁ)

Grupo Dignidade denuncia 30 mortes em Curitiba e Região Metropolitana e reclama que criminosos não foram presos


Risco de trabalhar na rua é grande: segundo ONG, 30 travestis e transexuais foram mortos em um ano, em Curitiba e Região Metropolitana
 
A diferença entre uma travesti e uma transexual é apenas uma. Enquanto a segunda precisa fazer a operação de mudança de sexo para se sentir bem, a primeira não sente esta necessidade e convive de forma pacífica com o órgão sexual com o qual nasceu. Fora essa questão, tudo é muito parecido. A forma de se vestir e a aparência feminina são as mesmas. O preconceito e a forma como são tratadas pela sociedade também são iguais.


Um dos problemas enfrentados por esse público pode ser medido por um dado divulgado pelo Grupo Dignidade (Ong de Curitiba que luta pelo direito de gays, lésbicas, travestis e transgêneros). Do final de 2007 até o final de 2008, 30 travestis e transexuais foram mortas em Curitiba e Região Metropolitana. Segundo a Ong, nenhum caso foi resolvido e ninguém foi preso.


O que acontece com as travestis na Capital paranaense reflete o que é realizado no resto do Brasil: preconceito, exclusão social e insegurança. De acordo com o Grupo Dignidade, uma pesquisa foi realizada e constatou-se que travestis ou transexuais sofrem 72 vezes mais preconceito se comparado com um homossexual. “Tem gente na sociedade que acha um afronto a questão de uma pessoa biologicamente nascida homem ter um corpo feminino e assumir uma identidade de mulher. Isso acaba refletindo em exclusão e violência”, diz a presidente do Grupo Dignidade, a transexual Rafaelly Wiest.


Em Curitiba, 90% das travestis e transexuais trabalham como profissionais do sexo. As outras 10% atuam como cabeleireiras, donas de pensão e donas de casa. Apenas uma delas é professora de história da rede pública, com pós-graduação. “Uma questão que deixo muito claro é que muitas delas não estão nas ruas por opção. Não podemos generalizar. Às vezes é a única opção. O mercado de trabalho formal está cada vez mais competitivo para todo mundo. Hoje é necessário sempre estudar e correr atrás de informações para manter o emprego. Agora imagina uma travesti concluir os estudos. É muito complicado. Existe preconceito dos alunos e também de alguns professores. Outra questão é a exclusão da família. Dificilmente um empregador vai abrir as portas para uma travesti.”, conta Rafaelly.


Poucas conseguem ultrapassar esta barreira e concluir os estudos. Foi o que aconteceu com a presidente do Grupo Dignidade. A transexual terminou o Ensino Médio e chegou a trabalhar em mercado e padaria. O último emprego antes de trabalhar na Ong foi o de encarregada de confeitaria, com carteira assinada. Para isso, o apoio da família é importante, além da força de vontade em encarar o preconceito de frente.


Nome social causa polêmica nas escolas
“A travesti assume a identidade feminina por volta dos 16 anos. É quando a pessoa se descobre e começam os problemas com a família e a sociedade”, explica Rafaelly Wiest, presidente do Grupo Dignidade. Além do preconceito, um dos grandes problemas enfrentados pelas travestis é a questão do nome de registro e do nome social. Dando um exemplo, em um local público a travesti, com roupas, aparência e comportamento de mulher, é chamada de João, sendo que quer ser chamada de Maria. Constrangimentos acontecem por conta desta confusão. Algumas pessoas dão risada, outras acham estranho. Por conta disso a Ong apurou que muitas travestis e transexuais desistem de estudar.


No Dia da Visibilidade das Travestis, comemorado em 29 de janeiro, uma passeata foi realizada na Rua XV de Novembro com o objetivo de chamar a atenção a respeito do uso do nome social das travestis nas escolas. Cerca de 60 pessoas participaram da mobilização, entre transexuais e travestis.


Durante a passeata as travestis falavam algumas palavras de ordem pedindo paz e o direito ao nome social. Nesse processo elas foram aplaudidas mas duas pessoas agrediram verbalmente as participantes. “Um deles disse para voltarmos para a Avenida Getúlio Vargas, ponto em que elas trabalham como profissionais do sexo. Estávamos lá pedindo paz e ainda nos ofendem. Tem menina (travesti) que não tem estrutura para aguentar isso”, opina Rafaelly.
 


Dados de familiares serão cadastrados
Entre as travestis e transexuais que moram na cidade, a maior parte veio de fora de Curitiba. São muitas que voltam para casa ou aparecem na Capital a cada mês. Por conta disso existe uma dificuldade em saber dados gerais sobre as profissionais.


No ano passado uma travesti de Curitiba foi morta em São Paulo após se envolver em uma briga. Ela levou uma facada no peito. Como ninguém conhecia a família da vítima, o corpo foi enterrado como indigente. Para evitar problemas como esse, o Grupo Dignidade começará a cadastrar as travestis e transexuais da cidade, com o contato da família. 
50 atuam na Getúlio Vargas e Iguaçu
A cada três dias uma travesti é agredida
“Muita gente diz que travesti é violenta e gosta de briga. Não que eu defenda. Existem sim pessoas maldosas, homens maldosos, gays maldosos. Não são apenas os travestis. Mas você apanha o dia inteiro na rua, apanha fisicamente ou moralmente todo dia, levanta da cama e é agredida, não tem apoio da família e não consegue estudar. Se sofresse isso todo dia você ia sair sorrindo? É um pouco de revolta por conta de todo o sofrimento que a gente passa”, opina Rafaelly Wiest.


Segundo o Grupo Dignidade, há alguns meses houve um aumento no número de agressões contra as travestis que trabalham nas ruas. Os insultos são frequentes. As profissionais que atuam nas Avenidas Getúlio Vargas e Iguaçu são alvo de ovos e pó químico de extintores dos carros que passam pelo local. Às vezes carros repletos de homens param na região e mandam as profissionais saírem de lá.


A cada três dias uma travesti é agredida fisicamente. O dado também foi divulgado pela Ong. São vários casos que chegam até o grupo. Esses dias uma levou um soco de um cliente que não quis pagar o programa. Outra fez o programa e o homem, depois de roubar a bolsa da travesti, ainda a chutou pra fora do carro em movimento. Alguns clientes são roubados e descontam a raiva em outras profissionais em forma de agressão física.


“Fizemos várias reuniões com a polícia. Eu não apoio as que não trabalham corretamente. Se o policial passar e ver que alguma não tem postura adequada, pode chamar a atenção ou se for mais grave levar para a delegacia. Acho que cada pessoa tem que saber seu limite, mas não é certo generalizar”, explica Rafaelly. Acredita-se que são duas travestis que causam confusão entre as outras 48 que atuam na Getúlio Vargas e na Iguaçu.


Um dos últimos casos de assassinato de uma travesti ocorreu em novembro. Ela fez o programa e o cliente, após matá-la, jogou o corpo em um esgoto no Parolim. O assassino não foi encontrado. “Em alguns casos entendemos que é por falta de dados. Mas não vemos nenhum tipo de mobilização. No começo do ano uma travesti de Londrina foi assassinada. Ninguém foi preso”.


Em nota oficial enviada à FOLHA, a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) esclarece “que sempre tratou com extremo respeito e atenção as questões de violência cometida contra qualquer ser humano. Todos os casos encaminhados à polícia do Paraná são investigados com a mesma dedicação sem qualquer tipo de discriminação”. A nota ainda diz que a Delegacia de Homicídios de Curitiba se coloca à disposição de representantes do Grupo Dignidade para ter conhecimento dos nomes das travestis assassinadas e mostrar os resultados das investigações de cada um dos casos. A assessoria de imprensa da Sesp informou não existir uma estatística específica de crimes contra travestis pois isso poderia ser caracterizado como preconceito. 
Grupo Dignidade completa 17 anos
Pela primeira vez, transexual ocupa a presidência da Ong, referência no Brasil em direitos dos homossexuais



Parada da Diversidade de Curitiba: este ano o evento será realizado em setembro
 
Desde 19 de janeiro o Grupo Dignidade possui uma nova presidente. Trata-se de Rafaelly Wiest, 25 anos, a primeira transexual a ocupar o cargo. Na gestão, que dura quatro anos, ela pretende trabalhar com os jovens que enfrentam problemas na família por conta da orientação sexual. Além disso, Rafaelly também quer levar os gays, lésbicas e travestis para dentro da Ong.


Nestes 17 anos de existência, a Ong Dignidade e as outras organizações aliadas (Transgrupo Marcela Prado, Dom da Terra, Artemis, Appad – Associação da Parada da Diversidade -, e Cepac – Centro Paranaense da Cidadania) ajudaram a lutar pelos direitos do público GLBT não só em Curitiba, mas também em manifestações nacionais. Criada por Tony Reis, conhecido militante a favor dos direitos dos homossexuais, outros três presidentes passaram pelo Grupo Dignidade antes de Rafaelly assumir o compromisso. Ela obteve destaque em 2008 quando foi eleita a primeira transexual delegada na 1ª Conferência Nacional da Juventude, que reuniu 1.200 pessoas.


“Fiquei feliz com a indicação, por conta de ser a primeira transexual na presidência de uma instituição de importância, referência no Brasil e no movimento mundial. É uma grande responsabilidade e acaba sendo um novo caminho que se abre para discussões e para a visibilidade das travestis e transexuais”, explica Rafaelly.


Segundo a atual presidente do grupo, existem locais no Brasil que os movimentos estão divididos. São organizações específicas para travestis e outras para homossexuais. Também existem articulações internacionais que mexem só com travestis ou só com transexuais. “Na minha gestão não vou separar. Acho que esses dois segmentos sofrem e enfrentam os mesmos problemas”.


Em setembro o Grupo Dignidade vai organizar o quinto encontro da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans e Intersex). É a primeira vez que o evento será realizado no Brasil. Durante uma semana serão realizados encontros para definir políticas públicas para a comunidade GLBT, além de eventos culturais, de educação, direitos humanos e exibição de filmes. O encontro reúne representantes de 33 países. Ao final do evento será realizada a Parada da Diversidade de Curitiba.


Aumenta a concorrência no centro
“Meu anjo eu tenho 1,68 de altura, 65 quilos, cabelo castanho, peitos médios. São R$ 40,00 um programa de 40 minutos a uma hora”. Isso é o que a transexual Josiane Alves fala em grande parte das ligações que recebe através dos anúncios que faz em jornais. Ela atende os clientes em casa, localizada na Vila Hauer. A profissional prefere não trabalhar na rua por ficar sujeita à levar pedradas, ovos ou até sacos com urina.


A rotina de Josiane é limpar a casa e depois se arrumar para receber eventuais clientes. Mas o ritmo de trabalho caiu devido à grande concorrência. Segundo ela, muitos homossexuais que não são travestis ou transexuais se vestem de mulher para realizar programas. “O mercado está saturado. Não tem trabalho para tanta gente. Muitos jovens acham que é fácil essa vida. Mas não existe glamour nenhum”, explica.


Josiane também diz que a vida de uma transexual em Curitiba não é fácil. Há algumas semanas haviam 70 travestis fazendo programa na Avenida Getúlio Vargas. Não existe cliente para tudo isso. Assim, o valor dos programas cai muito e algumas topam sair com alguém por R$ 15,00 ou até em troca de droga. “Tem dona de pensão que cobra diária com direito a comida. Como elas viram que o negócio é lucrativo, acabam virando agenciadoras e trazem diversas travestis de outros Estados. Hoje, a maioria vem de fora e tira o nosso trabalho”, reclama Josiane. Ela ainda diz que as diárias nas pensões giram em torno de R$ 40,00.


Se o movimento de atendimentos em casa diminui, Josiane é obrigada a trabalhar na rua. Mas ela é contra a nudez explícita que algumas fazem enquanto estão no ponto. Segundo a transexual, durante o dia já é possível encontrar travestis na Rua Anne Frank, na Vila Hauer. Josiane acredita que a nudez explícita traz mais violência. Por ser contra esse tipo de prática, ela nunca havia sido agredida. Porém, na última semana foi violentada pela primeira vez por dois homens. Para evitar este tipo de situação, Josiane acredita que discrição é fundamental. Até hoje ela não passou muitos constrangimentos em público. Na última vez estava com uma amiga em uma loja de eletrodomésticos e viu que os seguranças começaram a fazer piadas. A casa em que mora também já foi apedrejada por estudantes de uma escola próxima. Após acionar a polícia, que ficou de plantão em frente à residência, as agressões diminuíram. 
 
A busca pelo corpo desejado
Josiane Alves descobriu ser transexual em 1998, quanto tinha 17 anos. Com aparência feminina, ela não precisou fazer tantas alterações no corpo. Assim, tomou hormônios durante algum tempo e fez implante de silicone líquido nos seios. Pelos não nascem mais em seu rosto, mas a profissional do sexo garante que algumas travestis e transexuais passam até quatro horas se preparando para ficar com uma aparência mais próxima a de uma mulher. Tem até quem tira a barba com pinça. Josiane está em tratamento e observação para, no futuro, fazer a cirurgia de mudança de sexo. “Já fui desesperada para fazer a operação. Eu quero a cirurgia, mas não estou tão incomodada hoje”.


Para ser realizada a cirurgia, a transexual passa por um análise de psicólogos e uma equipe multidisciplinar. Após dois anos de avaliação, pode receber o laudo para ser feito o procedimento. A partir daí é necessário ver se consegue fazer a mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Apenas cinco hospitais do Brasil fazem a cirurgia. Em Curitiba não existe lugar que realize o processo pelo SUS. O Grupo Dignidade pretende fazer um pedido em massa para ver quantas pessoas querem mudar de nome e levar o caso adiante. No começo do ano, a transexual Marcela Prado foi a primeira no Paraná a conseguir esse direito.


Grande parte dos travestis tem maridos, mas Josiane é solteira. “Tem muito homem que é sustentado pela esposa”, conta. Ela já teve vontade de ter filhos, mas pensa em como lidaria com isso. “A sociedade acha que a gente pode influenciar a orientação sexual da criança. Isso não acontece”. A maior parte dos clientes de Josiane são casados. E muitos não querem usar preservativo. “Enquanto estou com eles tenho que usar toda uma psicologia para convencer a fazer o programa com camisinha”.


Josiane estudou até a oitava série do ensino fundamental. Segundo a própria transexual, ela não foi forte o suficiente para enfrentar a sociedade e resolveu parar. Mas agora avalia a possibilidade em retomar os estudos e fazer algum concurso público. “Tenho medo do meu futuro. Já vi travesti com 40 anos fazendo programa, mas são poucos casos. Preciso ter uma segurança financeira mais para frente”. 
 
Mercado de trabalho ainda mais fechado
Na tentativa de sair das ruas, as travestis e transexuais enfrentam a dificuldade de um mercado de trabalho fechado. Há um projeto nacional voltado para dar cursos profissionalizantes para este público. Se for aprovado, o programa será adequado para cada região do país, de acordo com as profissões que as travestis gostariam de atuar.


Um exemplo dessa dificuldade foi enfrentada pela própria presidente do Grupo Dignidade, Rafaelly Wiest. Ela enviou o currículo sem foto para uma oportunidade de trabalho. Como havia concluído diversos cursos técnicos, estava apta para ocupar o cargo. Mas quando chegou para a entrevista o responsável não quis recebê-la. “Às vezes tentamos fazer o máximo possível para nos adequarmos aos padrões da sociedade, mas mesmo assim encontramos barreiras”.


Este conflito também ocorre em espaços públicos. Rafaelly teve um acidente de trabalho e ficou afastada pelo INSS. Para receber o benefício foi até o banco, mas o caixa se recusou a dar o dinheiro pois achava não se tratar da mesma pessoa que estava na carteira de identidade. O gerente foi chamado para ela explicar que era transexual e fazia o tratamento hormonal. 

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

Redação Lado A

A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

COMPARTILHAR


COMENTÁRIOS