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Ponto final

Redação Lado A 11 de Setembro, 2010 00h47m

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Não. Ainda não era o que deveria. Ser. Seria das palavras. Seria o corpo e mente. A boca da palavra. Era isso. Queria isso. Queria ser verbo. Era imprescindível ser. O discurso. Todo ele. Em todos os gêneros. Em todos os tipos. Tinha que ser. Não lhe bastava o corpo exato. Medido em carne e osso e sangue. Queria o outro. Sangue negro da tinta. O sangue nobre do corpo do texto. Sangue que escorre pelas páginas e diz. Fala.

Mas não era. Era muito aquém disso. E daquilo. Era a lacuna e o espaço branco. O silêncio da palavra. O espaço do desespero do verbo que não se concretiza. Túmulo do verbo.

Frustração. Os dedos buscavam o ritual. Dança frenética em busca da magia que abrisse as portas para aquela outra dimensão. Noites de encantamentos em vão, de mandingas e bruxarias. Mas não havia nenhum portal, nem uma porta a ser aberta. E lhe era negada a entrada naquele mundo outro que tanto almejava. O que conseguia nos textos eram espaços, lacunas, travas, tombos.

Sua mágica não era boa. Nem suficiente. E suas gavetas de bocas abertas esperavam a ração diária. Alimentação literária.

E sofria. Muito. Via o mundo através de palavras. As ações eram descritas, reescritas. Parecia estar sempre narrando sua própria vida. Produzindo artigos científicos de suas dores. Crônicas de suas mazelas particulares. O mundo era um texto. E em cada reles espaço havia uma palavra a ser decifrada, quebrada e descoberta em todas as suas possibilidades.

Mas era triste. Muito triste. Aquela tristeza dos grandes clássicos.
Tristeza clássica.

Um dia estendeu um lençol branco no chão. Página mortuária. Deitou o corpo em enigma e resolveu morrer. Corpo-letra. Ponto. Símbolo.

Naquele dia as gargantas das gavetas foram devassadas por parentes e amigos. E o silêncio falou. E dos espaços e quebras e frestas de sua morte, imagens e sons se fizeram. Em lágrimas de olhos outros. Em verbos que dançavam loucos. E sua morte fez-se letra e frase. E livro. E texto.

Redação Lado A

SOBRE O AUTOR

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A Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa

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