Por Arthur Virmond de Lacerda Neto
“As chaves de S. Pedro” é o romance que Roger Peyrefitte publicou em 1955, cujo tema consiste na descrição dos costumes e das práticas da igreja católica, tal como existiam então. Embora se trate de romance, em que o protagonista é fictício, o seu conteúdo, em princípio, guarda fidelidade aos fatos.
Transcrevo o trecho do romance concerrnente à homossexualidade de alguns papas: “Sob o Renascimento, a calúnia atacou até os papas. A história nos fala das suas pretensas amantes, de seus pretensos favoritos. Du Bellay (1) divertiu-se em descrever um Ganimedes (2) com o solidéu vermelho na cabeça: era o cardeal Inocêncio del Monte que tinha, então, dezessete anos e que se tornou deão do Sacro Colégio (3). Mas du Bellay conduziu a calúnia aos limites do burlesco, quando acrescentou que o Papa – Júlio III del Monte – tinha mais de cinqüenta Ganimedes, querendo dizer os cinqüenta e poucos cardeais que formavam o senado da Igreja. Não penso que o cardeal du Bellay haja revelado a seu sobrinho poeta que, na cerimônia de investidura dos cardeais, figurassem cerimônias análogas às que se reprovaram nos Templários. De outro lado, quando o mesmo poeta assegurou que só pode julgar Roma aquele que, em pleno dia viu os cardeais encapados fazerem amor, ele me lembra o judeu de Bocacio, que se converteu por ver reinar todos os vícios na corte romana. Nada havia lá senão os vícios, como dirias da antigüidade.
Em épocas longínquas, a Igreja foi bem desculpada por acolher em seu seio víboras lúbricas. Nem sempre foi um chamado de Deus que conduzia ao clericato; muitas pessoas tinham somente o traje de padre, de arcebispo ou de cardeal. Não estudei o processo daquele arcebispo florentino cujos mal protesi nervi foram imortalizados na Divina Comédia (4). Mas desconfio desta acusação de “nervos mal tensos” que faz parte do velho fundo cômico da raça latina. Nos povos viris, ela é especialmente de honra e, quando se trata de meio de que, em princípio, as mulheres são banidas, ele é de rigor. Um panfleto taxa Alexandre VII Chigi das mesmas coisas de que, dois séculos mais cedo, du Bellay taxava Júlio III e que, dois séculos atrás, fora exprobado em Sisto IV. Mas lá também o exagero serve de limite: o autor pinta-nos as escadarias do Vaticano entulhadas de desregrados que subiam e que desciam e a praça Navone cheia de prostitutas que se lamentavam por não mais encontrarem freguesia. No século seguinte, Casanova (5) procurou mostrar que seus hábitos não haviam mudado. Mais tarde, os sonetos de Belli deixavam supor que o bom Gregório XVI rezava no mesmo missal. Em nossos dias, não se insinuou de Bento XV? Tudo isto são brincadeiras.” (Páginas 175-6 da edição brasileira).
Em outra passagem, o personagem do romance diz ao seu interlocutor: “Esta comprida construção que está diante de nós é habitada por refugiados. Regorgita de crianças e o meu gosto pela juventude, se bem que reintegrado em limites sábios, não se limita aos heróis da Congregação dos Ritos e aos retratos” (página.289 da edição brasileira).
O personagem, padre, informa que no prédio fronteiro há crianças e que mantém gosto pela juventude, gosto que anteriormente se achavam fora de limites sábios, que, no presente achavam-se dentro deles e que não se limitava a heróis de uma das corporações do Vaticano nem a retratos de pessoas: o personagem insinuou a sua apetência sexual por crianças.
1- João du Bellay (1792 – 1560) foi cardeal e poeta; era primo de Joaquim du Bellay (1522 – 1560).
2- Na mitologia grega, Ganimedes era príncipe de Tróia, por quem se apaixonou o deus Zeus, que se transformou em águia, raptou-o e possuiu-o sexualmente.
3- Inocêncio del Monte (1532 – 1577) foi cardeal, sobrinho adotivo do papa Júlio III e, talvez, seu amante.
4- No canto XV, estrofe 114 da Divina Comédia, Dante refere-se à homossexualidade de André de Mozzi, bispo de Florença, de 1287 a 1295.
5- João Casanova (1725 – 1789), autor de memórias da sua vida.