“Corydon”, ou “Córidon”, em português, intitula o livro do romancista francês André Gide (1869-1951), cujo tema consiste em uma defesa da homossexualidade. Publicado em Paris, em 1911, em tiragem de apenas doze exemplares, que não se distribuíram, e republicado em 1920, sob a forma de quatro diálogos fictícios entre o homossexual Córidon e um amigo seu, anônimo, os personagens analisam a homossexualidade, sob vários aspectos, o amigo no esforço de compreendê-la e Córidon no de explicar-lha, primeiro como naturalista, depois, à luz da história, da literatura e das belas-artes e, por fim, como sociólogo e moralista.
Ao publicá-lo, Gide achava-se cônscio de que escandalizaria e chocaria as pessoas cuja mentalidade formara-se na homofobia, que o seu livro contrariava e que expunha o autor a prejuízos de ordem pessoal, dadas as reações que provocaria. Apesar das tentativas, dos seus amigos, de dissuadi-lo de escrevê-lo, Gide concluiu-lhe a redação e o publicou, na convicção de que o preconceito, enquanto “mentira acreditada” (no seu dizer), prejudicava os indivíduos e a sociedade.
“Procuro explicar aquilo que é”, menciona ele no seu prefácio à segunda edição, enquanto no à primeira, asseriu: “Não acredito de modo algum que a essência da sabedoria seja abandonar-se à natureza, e dar livre curso aos instintos; mas creio que, antes de procurar reduzi-los e domesticá-los, o que importa é compreendê-los – porque inúmeras desarmonias que somos compelidos a sofrer são apenas aparentes e devidas a erros de interpretação”.
No Brasil, a editora Civilização Brasileira publicou, em 1971, uma tradução, de qualidade, de “Corydon”, sob o título de “Córidon”, cujos argumentos exporei, como estímulo à sua leitura e como informação elementar acerca do seu conteúdo, destinado a quem não o ler.
Na coletânea “Ética” (Companhia das Letras, 1992), encontra-se um longo ensaio, intitulado “Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo”, em que, à semelhança do que pratiquei aqui, Jurandir da Costa Freire expõe as teses de “Córidon” e as comenta.
Atualmente, quando a homofobia decresce, a homossexualidade deixa, crescentemente, de corresponder a um tabu e a uma nota pejorativa, os argumentos de “Córidon” parecerão, quiçá, simplórios. Ao tempo da sua publicação, contudo, corresponderam a um passo audaz em favor da compreensão e da aceitação da homossexualidade. A sua singeleza indica, por um lado e infelizmente, a intensidade do preconceito, muito superior há noventa anos do que hoje, e, por outro e felizmente, o quanto a sociedade evoluiu no sentido da aceitação da homossexualidade.
No primeiro diálogo, Córidon confessa-se homossexual e narra a paixão que sentiu, por si, um rapaz, a quem, se não se houvesse suicidado (perturbado com a sua própria homossexualidade), haveria persuadido de que a sua condição sexual não representava enfermidade e de que “o desvio do seu instinto era tão somente natural”.
Explica ao seu interlocutor que, até então, os livros existentes acerca do tema originavam-se de médicos, que escreviam com base na sua experiência clínica, ou seja, nos casos de uranistas infelizes, queixosos, doentes, enquanto Córidon tencionava ocupar-se dos “pederastas normais”, expressão que explica por contraste aos anormais: a homossexualidade, tanto quanto a heterossexualidade, comporta todos os graus, todos os matizes: do platonismo à salacidade, da abnegação ao sadismo, da saúde jovial à tristeza acabrunhada, da simples expansão a todos os refinamentos do vício. A inversão é apenas um anexo. Ademais, existem todos os estados intermediários entre a homossexualidade exclusiva e a heterossexualidade exclusiva”. Por inversão, entendia o papel de sacana.
Mais adiante, acrescenta: “Aposto que, antes de vinte anos, os termos contra a natureza, antifísico etc., não mais serão levados a sério. Só admito uma coisa no mundo que não é natural: a obra de arte. Todo o resto, quer queira, quer não, entra na natureza, e, desde que não se lhe olhe mais como moralista, é como naturalista que convém considerá-lo”.
Considerando-o como naturalista, vale dizer, ocupando-se do tema enquanto dado da biologia, principia com três citações, duas de Pascal e uma de Montaigne.
A primeira de Pascal: “Tenho muito medo de que essa natureza seja, ela própria, apenas um primeiro hábito, como o hábito é uma segunda natureza”; a outra: “Sem dúvida, a natureza não é tão uniforme. Portanto, são os costumes que fazem tal, porque constrangem a natureza; às vezes a natureza os sobrepuja, e retém o homem no seu instinto, apesar de todos os costumes, bons ou maus”.
A de Montaigne: “As leis da consciência que dizemos nascer da natureza, nascem dos costumes”.
Da associação das três citações, conclui Córidon que julga-se a homossexualidade conforme os costumes, segundo os quais apenas a heterossexualidade corresponde ao normal e que, ao dizer-se “contra a natureza”, deve-se dizer “contra os costumes”.
“Em nossa sociedade, em nossos costumes, tudo predestina um sexo ao outro; tudo ensina a heterossexualidade, tudo convida a ela, tudo a provoca: o teatro, o livro, o jornal, o exemplo dos mais velhos, o aparato dos salões, da rua”, em uma “cumplicidade ambiente”, a despeito da qual desponta a inclinação homossexual que, assim, é inata e surge em oposição à mentalidade que a censura e que conduz à heterossexualidade. E quando algum homossexual pratica atos uranistas por imitação, “é porque tinha vontade de imitar”, porque “o exemplo lisonjeava o seu gosto secreto”.
Tal gosto, observa Córidon “é natural”: “…se o vedamos aqui, ressurge mais adiante…Puna, que de nada lhe vale! Comprima! Oprima! Não o suprimirá”. Acrescenta: “A verdade é que esse instinto que você imputa contra a natureza sempre existiu, quase tão forte, em todas as épocas, sempre e em toda a parte”. Logo, cumpre “constatar e reconhecer a homossexualidade como natural”.
Os costumes heterossexuais resultam da concepção do amor, vigente na sociedade, ao passo que, segundo Córidon, o amor inexiste na natureza: ele existe na sociedade como “invenção humana”; por igual, o instinto sexual, que levaria cada a ser a procurar outro, de sexo oposto, igualmente inexiste: o que existe, é a busca da volúpia, da sensação de prazer sexual, independentemente do intuito reprodutor: daí a homossexualidade observada em pombos, patos, galinhas, perdigotos, besouros, cães, carneiros, bodes, mesmo em presença das fêmeas correspondentes.
A observação dos animais, argumenta Córidon, resulta na averigüação da “manifesta supremacia da beleza masculina”, “de alto a baixo na escala animal”, “em todos os pares animais”, o que se repete em relação ao ser humano, como o confirmam as observações de Darwin, de Stevenson e de “muitos outros exploradores que, convivendo entre povos nus”, “maravilharam-se com a beleza dos jovens”, fora de qualquer inclinação homossexual.
Do reconhecimento da beleza feminina como inferior à masculina, originam-se os atavios e meios artificiais de embelezamento, tão próprios das mulheres, que, com eles, procuram “avivar o desejo do homem e suprir uma beleza insuficiente”; daí, também, a predileção dos escultores da antigüidade grega, pelos adolescentes, representados nus, à diferença das mulheres, que se figurava encobertas.
Da referência à estatuária grega, Córidon transita, algo abruptamente, a uma alusão aos florentinos e à asserção de que “todo grande renascimento ou exuberância artística sempre, e em qualquer país, se acompanhou de um grande desbordamento do uranismo”, vale dizer, da homossexualidade. E prossegue: “E no dia em que se resolver escrever uma história do uranismo em suas relações com as artes plásticas, não é nos períodos de decadência que o veremos expandir-se, mas muito ao contrário, nas épocas gloriosas e sãs, quando a arte é mais espontânea e está mais longe do artifício”.
Em abono da sua tese, cita a opinião de Goethe, segundo quem a homossexualidade ocorria porque “o corpo do homem era muito mais belo, mais perfeito e mais realizado do que o corpo da mulher”. Consoante ele, ainda, “a pederastia é tão antiga quanto a humanidade”, entendido o substantivo como sinônimo de homossexualidade.
Prossegue Córidon: a homossexualidade corresponde a um instinto “muito ingênuo e espontâneo”, de que encontram-se exemplos na poesia bucólica da antigüidade grega e latina, em que Tíbulo, Catulo, Marcial, Virgílio, cantavam os amores entre homens. Tal espontaneidade consiste em que, dado aprender-se a heterossexualidade, antes ou durante o seu aprendizado, o homem experimenta a homossexualidade, experiência que, nas modernas sociedades ocidentais, coibe-se pelo condicionamento cultural em favor do padrão heterossexual.
Continua: “…certos homens não seriam atraídos de maneira irresistível para a mulher quando despojada de atavios.[…] Julgo, porém, que na maior parte dos casos, o apetite que desperta no adolescente não tem uma exigência precisa; que a volúpia lhe sorri, seja qual for o sexo da criatura que a provoca, e que ele é devedor dos seus costumes antes à lição que recebe do que à dedicação do seu desejo; ou, se prefere, digo que é raro que o desejo se precise por si mesmo e sem o apoio da experiência”.
A tal afirmação, retruca o interlocutor de Córidon, à guisa de conclusão: “[…] se cada adolescente fosse abandonado a si mesmo, e se a repressão exterior não interferisse – dito de outra maneira: se a civilização se relaxasse – os homossexuais seriam ainda mais numerosos.”
No quarto e derradeiro dos diálogos entre Córidon e o seu amigo, aquele refere-se ao livro de Leão Blum, “Do casamento”, que preconizava a liberdade sexual das mulheres solteiras como alternativa à prostituição e ao adultério, alternativa à qual Córidon acrescenta os costumes gregos de homossexualidade e ressalta que na sociedade ocidental, se por um lado, exalta-se a elevação da cultura grega, por outro, deprime-se a sua pederastia, a despeito de que a primeira achava-se ligada à segunda e não existiria sem ela.
Observa, a seguir, que as referências, na literatura da Grécia antiga, sofreu mutilações praticadas pelos clérigos da Igreja Católica, nas passagens que lhes repugnavam, relativas à homossexualidade que, se admitida nas sociedades contemporâneas que prezam a virgindade feminina, esta manter-se-ia ou prolongar-se-ia, porquanto os homens procurariam outros homens, e não tanto as mulheres.
Retornando à sociedade grega, reproduz as passagens da Vida de Pelópidas, de Plutarco, em que este refere-se ao célebre batalhão dos trezentos amantes tebanos, invencível até a batalha de Queronéia, após a qual, Felipe, diante dos corpos de todos os seus integrantes, exclamou: “Pereçam miseravelmente aqueles que suspeitavam tais homens fossem capazes de fazer ou tolerar algo de vergonhoso”.
“A decadência de Atenas, continua Córidon, começou quando os gregos cessaram de freqüentar os ginásios; sabemos hoje o que se deve entender por isso. O uranismo cede à heterossexualidade” a que é concomitante um respeito pela mulher, inferior ao que se verificava enquanto prevaleceu a homossexualidade.
Insiste, no passo seguinte, no argumento anterior: “ […] os períodos de grande eflorescência artística – a da Grécia no tempo de Péricles, a romana do século de Augusto, a italiana durante a Renascença, a francesa da Renascença e sob Luis XIII, a persa no tempo de Hafiz, foram os mesmos em que a pederastia se afirmou de maneira mais ostensiva, diria até mais oficial. Quase diria que os períodos ou regiões sem uranismo são também os períodos ou regiões sem arte.”
Destas considerações, o amigo de Córidon pergunta-lhe, de súbito, porque o Código Civil francês (de 1804, conhecido também como Código Napoleão), não reprime a homossexualidade: talvez, também, porque a sua repressão teria embaraçado alguns dos melhores generais de Napoleão…
Face ao condicionamento cultural homofóbico, pondera, além, Córidon, “o estado dos nossos costumes faz da tendência homossexual um escola de hipocrisia, de malícia e de revolta contra as leis”, face à necessidade de os uranistas protegerem-se do preconceito e da discriminação.
Após negar às suas teses qualquer intenção adversa ao casamento, acresce: “E sustento que a paz do casal, a honra da mulher, a respeitabilidade do lar, a saúde dos esposos ficariam melhor preservadas com os costumes gregos do que com os nossos”. Disto, transita Córidon para o elogio da amizade entre jovens: “um amigo, mesmo no sentido grego da palavra, é melhor conselho para um adolescente do que uma amante”; enquanto é-se moço, “se alguém mais velho” enamora-se do efebo, “nada se lhe pode apresentar de melhor, de preferível que um amante” e “[…] se esse adolescente cair nas mãos de uma mulher, isso lhe pode ser funesto”.