Portaria publicada em 14 de setembro de 2016, no colégio D. Pedro II (da cidade do Rio de Janeiro), suprimiu a obrigação de os rapazes trajarem fardamento tipicamente masculino, e de as moças envergarem roupas tipicamente femininas, embora mantivesse a imposição de uso de uniforme. A alteração visa a propiciar liberdade de opção dos alunos e das alunas transgêneros, que poderão trajar-se consoante o gênero com que se sintam identificados, o que, na prática, permite o uso de saias pelos rapazes que assim o desejarem.
Houve insurgências contra a inovação, de pais. O repórter Giovanni Sanfilippo experimentou a reação da pessoas, em outubro de 2016, ao expor-se, em público, de saias, na cidade do Rio de Janeiro. Observou simpatias e hostilidade¹.
As mulheres não usam calças? Usam-nas. Poucas décadas antanho, as calças correspondiam a traje masculino, como “coisa de homem”, exclusivamente. A pouco e pouco, as mulheres passaram a vesti-las, ao ponto em que, presentemente, desapareceu a já agora obsoleta inerência entre calças e homens, e mulheres e saias. Alguém se indigna por isto? Não; ao contrário, inveteraram-se, em geral, as calças femininas².
É consuetudinária a convenção que associa saias a mulheres e que, outrora, vinculava calças a homens. Todavia os costumes evoluem, as práticas sociais cambiam, os valores alteram-se; as formas de ser, estar, de comportar-se inovam-se e, com elas, os trajes. Quando, décadas atrás, algumas mulheres, ousadamente, adotaram o uso de calças, muitos terão, certamente, estranhado a novidade e a recriminado: “saias são coisa de mulher e calças são coisa de homem”.
Contudo, a habituação ao novo uso, a sua difusão, a sua persistência, banalizaram como normal o que, de começo, era insólito. Dantes, mulher nenhuma vestia calças; presentemente, pode vesti-la toda que o queira, sem suscitar estranheza (à exceção das evangélicas, com as suas careticas típicas). Calça é coisa de homem, exclusivamente?
O mesmo é passível, simetricamente, de repetir-se com as saias: por que não as podem vestir os homens? Podem. Basta que uns façam-no e outros imitem-nos: a pouco e pouco, difundir-se-á a inovação que, no princípio, suscitará a estranheza de alguns (compreendo-os), a repugnância dos evangélicos (surpreenderia se assim não fosse), a simpatia dos de mente aberta (como eu), a adesão dos que se ocupam mais com o seu conforto do que se preocupam com a opinião alheia (apóio-os).
O uso ou desuso de saias por homens pertence à liberdade individual; a sua difusão dependerá do desembaraço dos precursores que, animados por espírito de independência e de conforto, adotarem-nas; da indiferença de quem se ocupa da sua vida ao invés de fiscalizar a alheia, da receptividade de quem perceber vantagem na inovação e a despeito da rejeição, previsível, dos refratários³.
Resistem às inovações de costumes os adesos à rotina e à imitação; os neofóbicos; os que sobrevalorizam o juízo alheio (“O que é que os outros vão pensar? O que é que os outros vão dizer?”); os inseguros; certos velhos. Estes, são arcaicos por geração; aos demais, repugnam algumas novidades infratoras dos conceitos e dos preconceitos em circulação, até que a novidade (porventura chocante) se torne habitual. Freqüentemente, o novo por primeiro estranha-se; depois, entranha-se.
As saias masculinas despertarão a ojeriza de abundantes evangélicos, parcela vultosa da sociedade brasileira, e crescente. Com exceções, eles constituem-lhe o pior: arcaicos e arcaizantes, ignaros e toscos. Desconhecem o valor da liberdade de costumes; praticam a obediência e a sujeição aos costumes consoante a suposta volição da sua divindade.
Aborreço que se almeje deitar regras na liberdade alheia, máxime se originárias da Bíblia.
Pelo lado utilitário, as saias são mais confortáveis, mais frescas, mais ventiladas do que calças e bermudas.
Vestem saias os escoceses; vestiam-nas os soldados romanos; os gregos da antigüidade trajavam túnicas curtíssimas, em jeito de saias.
Como lembrava Stuart Mill, os “excêntricos” (que divergem da maioria) virtualmente renovam os costumes e as mentalidades. São precursores, cujas inovações os imobilistas, os reacionários, certos religiosos recriminam de começo, até que as pessoas acabam por se acostumar, com o tempo. A virtual recusa inicial de alguns, de vários, de muitos, é concomitante à aceitação de outros, ainda que progressiva. A pouco e pouco, à rejeição sucede-se a aceitação e a indiferença equivale à aceitação passiva.
O voto feminino, a educação mista (turmas de alunos e alunas), o divórcio, o casamento homo, a nudez, a liberdade sexual, a contracepção, provocaram o repúdio, o temor, o alarme de setores das sociedades ocidentais, inclusivamente brasileira. Já os câmbios da moda, dos cortes de cabelo (curtos, coques varonis, compridos e soltos, de tipo moicano), das tendências vestimentárias, tendem a propagar-se com bem mais serenidade: será, porventura, o caso das saias masculinas.
Antanho, calça “era coisa de homem”: deixou de sê-lo. Saia é “coisa de mulher” até deixar de sê-lo.
Demais, auto-determinação: meu corpo, minhas regras. Respeito pelo próximo: viva e deixe viver; cuide da sua vida, que da minha, trato eu. Senso de limites em relação a outrem: não gosta, não use; não fiscalize a vida alheia nem o vestuário alheio.
O grau de receptividade às inovações permite aferir-se a soma de conservadorismo, de arcaísmo, de intolerância, de estreiteza de espírito de quem lhes reage, bem como a forma como reage: haverá rotineiros que repelirão as saias masculinas em nome da tradição; haverá toscos que repudiá-las-ão em nome da sua masculinidade; haverá religiosos que rechaçá-las-ão em nome da vontade do seu deus; haverá abelhudos que indignar-se-ão por vezo de fiscalizar a vida alheia. Haverá libertários que saudá-las-ão em nome da liberdade; haverá, antes de todos, quantos as usem por conforto, opção ou gosto pela novidade.
Saúdo as saias masculinas.
1 http://extra.globo.com/noticias/rio/reporter-do-extra-veste-saia-do-pedro-ii-relata-reacao-nas-ruas-20280207.html
2 A despeito de as evangélicas manterem-se-lhes refratárias, por obediência à volição do seu deus, interpretada e imposta pelos seus porta-vozes, campeões da indumentária austera: saias femininas; calças sociais e camisas masculinas; sapatos; desuso de camisetas, ao menos no clima lúgubre de Curitiba.
3 O poeta Fernando Pessoa criou o aforismo, empregado em Portugal, como lema da primeira propaganda da Coca-Cola, de que “primeiro estranha-se; depois, entranha-se”.
Sobre isto, Leandro Narloch deitou artigo, na revista Veja, em 22 de setembro de 2016.