Um dia sem gays

Allan Johan 11 de Outubro, 2018 00h18m

A ideia foi crescendo na internet, um amigo espalhou para o outro, e foi indo. “E se fizéssemos uma greve?”. Surgiu assim a ideia, copiada de uma campanha importada que não deu certo. Nas redes sociais, o assunto virou o tópico por diversos dias. Todo mundo ficaria em casa, dormindo ou vendo tevê. Nem entrar na internet ou atender ao telefone poderia. Seria um dia sem gays, seria o mundo sentindo falta daqueles que ignorava. Alguns não acreditaram na proposta, não daria certo, mas por algum motivo, aconteceu!

Márcia estava de folga no hospital naquele dia. Ela era enfermeira chefe da UTI. Acordou tarde e se surpreendeu que os dois filhos faltaram à faculdade. O meu professor avisou ontem que não poderia dar aula hoje, disse o mais novo. O mais velho falou que seria uma palestra mas preferiu ficar em casa. Ela não desconfiou de nada, apenas achou estranho que eles não foram aproveitar o dia bonito que fazia lá fora. No meio da manhã, recebeu uma ligação do trabalho. Ia precisar cobrir outro turno, pois vários médicos, enfermeiros e auxiliares faltaram.

Antes de voltar para o trabalho, resolveu passar no shopping e almoçar. Ainda era cedo mas poderia comer algo rapidamente por lá. Estranhou que algumas lojas estavam fechadas. Tentou marcar horário no salão para quando saísse do seu turno, no fim da tarde, mas havia poucos profissionais trabalhando naquele dia. Na praça de alimentação, também percebeu que estava pouco movimentada, não parecia uma quarta-feira típica. Márcia almoçou e foi para o trabalho. 

No hospital, viu que até o guarda faltara naquele dia. Ligou para alguns de seus funcionários para pedir reforço e não conseguiu falar com eles. Por um momento, achou tudo aquilo surreal. Até o médico radiologista faltou pela primeira vez ao seu posto. Deveria ser uma epidemia de alguma nova gripe, pensou, mas, caso fosse, o hospital estaria lotado de pacientes, mas o dia estava até calmo, por sorte. Será uma greve dos motoristas de ônibus? Nada… Sentiu falta de mais alguns profissionais naquele dia. Algumas pessoas da limpeza, socorristas, até o diretor do hospital não apareceu. Tentou falar com o gerente do banco mas ele não estava. O dia foi puxado e ela resolveu ir direto para casa.

Em casa, os filhos assistiam tevê. Geralmente estariam na internet, foi ver o que assistiam e não era nada demais. Estranho. Perguntou para o mais novo: “Filho, percebeu algo estranho hoje?”. “Não mãe”, respondeu ele. Ao mais velho, foi mais detalhista: “Olha, parece que hoje metade do mundo resolveu ficar em casa. Viu algo na internet ou no jornal?”. Não mãe, respondeu o outro filho. Exausta, ela foi dormir para tentar esquecer aquele dia.

No dia seguinte, seu melhor amigo e funcionário do hospital revelou que o dia anterior fora um dia sem os gays. “Até as bolsas caíram”, contou ele orgulhoso. O apresentador charmoso do telejornal do almoço não apareceu para trabalhar e teve que ser substituído por uma das repórteres. “Mas porque não me avisaram?”, quis saber ela. “Ora, porque a idéia era essa, que as pessoas sentissem a falta dos gays, lésbicas, transexuais, travestis, pois só assim nos darão o devido valor e respeito”. “Mas todos que faltaram aqui no hospital eram gays?”, quis saber ela. “Nem todos, mas grande parte. Alguns agiram por solidariedade”, revelou o enfermeiro. “Se eu soubesse teria aderido ao movimento, afinal, tenho amigos gays”, disse Márcia. “Mas não teria percebido os detalhes, visto que tem gays que não são assumidos ao seu redor e que também fazem falta”. “É, o gato do raio X, por exemplo”, revelou a chefe que ficou surpreendida e encantada como o manifesto surtiu efeito.

Seus filhos foram conversar com ela naquela noite. O seu filho mais velho era gay, ela já sabia. O mais novo, de 18 anos, resolveu contar que também era gay e que fizera parte da greve no dia anterior. “Mas eu achei que você faltou aula por causa do seu professor”, respondeu a mãe. “Não mãe. Tanto eu quanto o Cláudio tivemos aula. Faltei porque também sou gay e queria ajudar na campanha”. Passado o susto inicial, a mãe entendeu. “Fez certo filho. Pode ter certeza que se eu tivesse percebido que as pessoas mais preciosas da minha vida são gays e fizeram este lindo protesto silencioso, eu também teria ajudado”, disse a mãe ao filho que não conseguiu mentir que faltou aula e que só queria que o mundo fosse um pouco mais atencioso com ele.

 

 

Allan Johan

SOBRE O AUTOR

Allan Johan

O jornalista Allan Johan é fundador da Revista Lado A, militante LGBTI e primeiro Coordenador da Diversidade Sexual da Prefeitura Municipal de Curitiba entre março de 2017 até maio de 2020.


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