Redação Lado A | 08 de Fevereiro, 2019 | 13h23m |
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“Como Lourival, que era mulher, pôde se passar por homem durante tanto tempo?”, questiona a reportagem transfóbica do Fantástico exibida em 3 de fevereiro. Ignorando a identidade de gênero masculina do idoso de 78 anos, a reportagem insinua que Lourival Bezerra de Sá cometeu falsidade ideológica durante toda a sua vida “se passando por homem”.
Na data de 5 de outubro de 2018, Lourival sofreu um infarto fulminante e foi atendido pelo Serviço Médico de Urgência (SAMU). Após sua morte, os médicos legistas observaram as características femininas no corpo de Lourival como seios e vagina. Assim, começaram uma investigação junto com a polícia de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde vivia o idoso.
Durante a vida, segundo contaram vizinhos e familiares, Lourival sempre se vestiu com roupas masculinas e nunca se deixou ser visto nu. Além disso, os entrevistados disseram que o idoso era muito reservado e sempre estava com roupas que cobrissem seu corpo. Os médicos legistas observaram algumas lesões no corpo de Lourival, decorrentes do uso de faixas para esconder os seios.
Por outro lado, a Justiça ainda não reconheceu Lourival como um homem trans mesmo com todas as informações da atualidade sobre identidade de gênero. Além disso, devido aos trâmites burocráticos e a insistência da investigação em não considerar Lourival como um homem trans, o corpo do idoso está parado no Instituto de Medicina e Odontologia Legal (Imol) de Campo Grande.
Enquanto a investigação não é concluída, o corpo de Lourival não pode ser enterrado. Caso a polícia não encontre documentos de registro da “verdadeira identidade” do idoso, ele poderá ser sepultado como indigente. Na busca por informações, a polícia pesquisou em sistemas de registros de alguns estados onde o idoso morou. No entanto, ainda não acharam nenhuma pista.
Há 40 anos Lourival vivia em Campo Grande (MS) junto de uma cuidadora. Segundo a senhora de 65 anos, eles não tinham relacionamento amoroso. Mesmo assim, Lourival assumiu um dos filhos da mulher e adotou outro junto a ela. A documentação dessas crianças foi emitida de forma legal. Além desses dois filhos, Lourival já havia registrado mais quatro crianças no passado.
Em Campo Grande, o idoso trabalhou de pintor e corretor de imóveis. Além disso, na companhia da cuidadora, ele abriu uma empresa. De acordo com a reportagem, nem mesmo a cuidadora sabia que Lourival seria um homem trans. Ele não deixava que ela o visse nu ou desse banho nele. No entanto, segundo as investigações, Lourival disse seis dias antes de morrer que nascera sob o sexo feminino.
A identidade antiga revelada por Lourival para a cuidadora é de Enedina Maria de Jesus. Lourival confessou ainda que nasceu em Bom Conselho, Pernambuco, e não em Alagoas como afirmou durante toda a sua vida. A revelação de Lourival antes de sua morte, no entanto, não ajudou nas investigações. A polícia procurou por registros de Enedina Maria de Jesus em vários locais do Brasil mas ainda não encontrou pistas.
A cuidadora forneceu um único documento de Lourival que continha seu nome vinculado a um CPF. Durante a vida, o idoso sempre desconversava sobre seus documentos e nunca deixou que os familiares tentassem regularizá-los. Mesmo com o idoso vivendo todos esse anos como homem, como Lourival, a polícia ainda questiona sua identidade para então poder enterrá-lo.
Até pouco tempo atrás era mais burocrático retificar o nome de pessoas trans. Para algumas, o procedimento era caro e inviável. Assim, na época de Lourival, seria praticamente impossível retificar seus documentos. Por outro lado, há evidências mais do que suficientes que o idoso era sim um homem trans. Isso faz da investigação um procedimento transfóbico que deslegitima a identidade de Lourival.
Alguns órgãos e entidades LGBT emitiram notas de repúdio contra a reportagem do Fantástico e a forma pela qual está sendo conduzida a investigação. Considerando a idade e o contexto social de Lourival, é extremamente equivocado não considerar sua identidade como um homem trans.
“Está óbvio que se tratava de um homem trans e que estava vivendo sua vida da forma como ele pôde e soube viver. Era um homem mais velho, idoso e não deve ter tido acesso as informações que se tem hoje sobre transmasculinidades e homens trans. O Sr. Lourival foi um homem e que viveu e foi reconhecido como tal”. Esse trecho faz parte de uma nota emitida pela Associação Brasileira de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos (ABGLT), em conjunto com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e com a Rede Nacional de Operadores de Segurança LGBTI+ (RENOSP LGBTI+).
Além dessas organizações, o GT Identidade de Gênero e Cidadania LGBTI da Defensoria Pública da União também se manifestou. O órgão afirma que é direito do senhor Lourival ser enterrado conforme o nome e a identidade de gênero afirmados por ele durante toda a sua vida. O não cumprimento disso reflete no apagamento e desrespeito de identidades e vivências trans.
SOBRE O AUTORRedação Lado AA Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa |
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