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Folhas de diário(2005)
05 de agosto
Riram de mim hoje na escola. Até a professora. Pegaram minha pasta, rasgaram meus papéis de carta, disseram que era coisa de menina. Eu não sou menina, mas eu gosto de papéis de carta e de desenhar flores no caderno.
Por que eu não posso gostar de trocar papéis e de desenhar flores e corações? Minha mãe tem um livro em casa só com quadros de pintores famosos, e eles também pintavam flores, muitas flores. E eu já reparei que em um dos papéis de carta mais lindos que tenho a assinatura embaixo do desenho de um urso fofo e amarelinho, a do desenhista, era de homem.
Se me odeiam só por isso, o que fariam se soubessem que eu gostava do Carlos, que saiu do colégio ano passado? Eu não sei como nem por que, mas de repente eu já não conseguia mais deixar de pensar nele, de querem protegê-lo, abraçá-lo, conversar com ele o dia todo…
Talvez eu devesse agir como todos os outros meninos e aprender sentir o que eles sentem. Mas, eu não sei como fazer isso!
06 de agosto
Contei pra mamãe o que houve na escola e ela foi comigo hoje de manhã falar com a professora. Fiquei sentado em um banco distante, mas consegui escutar quase tudo. Minha mãe falou que era um desrespeito o que fizeram comigo e perguntou como a professora podia ter deixado aquilo acontecer sem repreender os alunos. A professora disse que eu tinha problemas e que precisava ir a um psicólogo. Minha mãe disse que quem tinha problemas era o aluno que rasgou os meus papéis pois ele se comportou como um selvagem. A professora ficou quieta. Daí minha mãe falou que eu nunca havia criado confusão na escola e que minhas notas sempre foram boas e que se eles não me respeitassem ela iria procurar um advogado e processá-los. Então chamaram a diretora e ela pediu desculpas à mamãe.
E depois a professora pediu desculpas pra mim na frente de todos em nome da sala, e colocou o menino que rasgou meus papéis de carta de castigo. As minhas amigas comemoraram e até um menino que estava rindo de mim ontem veio se desculpar.
Puxa, hoje o dia foi perfeito!
07 de agosto
Meu pai veio conversar comigo. Acho que aquela conversa que todos os pais têm um dia com os filhos, pelo menos nos seriados da tevê. Sobre sexo.
Ele começou dizendo que eu ainda era novo, mas logo ia sentir vontade de namorar alguém e que eu precisava ter muita responsabilidade, ser consciente… e falou sobre camisinha e Aids, as mesmas coisas que eu já estou cansado de ouvir na escola. E me deu também um livro, “Perguntas e respostas sobre sexualidade para adolescentes”, que eu vou ler de noite.
Mas eu sabia que tudo isso era só o começo de uma conversa ainda mais complicada, embora eu estivesse calmo e ele parecesse estar também.
Perguntou se eu já tinha gostado de alguém. Eu disse que sim. Perguntou se era de um garoto ou uma garota. Eu disse que era do Carlos, mas que ele nunca soube de nada.
Então ele falou que para ele tanto fazia se no futuro eu me relacionasse com pessoas do sexo masculino ou feminino, desde que eu estivesse preparado e me cuidasse, mas que muita gente não via as coisas assim e talvez me maltratasse, como fizeram os meus colegas, mas que eu nunca deveria aceitar isso e nem dar atenção a piadas e brincadeiras de mau-gosto sobre o meu jeito de ser. Daí eu falei pra ele que o Marquinhos, que é o menino mais gordo da escola, e o Cássio, que é o mais magrelo e a Ana, que tem sardas no rosto, sempre têm que agüentar muitas piadas dos colegas por serem assim, meio diferentes da maioria. E meu pai falou que era justamente isso, as pessoas não entendem ou têm medo de quem é diferente delas e por este motivo fazem estas coisas. Mas que nada disso diminuía o valor nem do Marcos, nem do Cássio, nem da Ana.
Ele falou que muita gente diz que os homossexuais não respeitam Deus porque Ele fez o corpo do homem pra encaixar-se só com o da mulher e vice-versa, mas que isso não é justificativa, porque se a gente tivesse que usar nosso corpo só do jeito como ele foi feito então ninguém deveria usar roupas pra se proteger do frio, por exemplo, afinal todo mundo nasceu pelado, e nem deveria tomar vacinas pra se proteger de doenças, se nosso próprio corpo não é capaz de produzir sozinho a cura para elas…
Disse também que se uma pessoa cumpre seus deveres e não prejudica os outros, ninguém tem direito a se intrometer em sua vida e em sua privacidade.
Depois ele me deu um abraço e falou que só queria que eu fosse muito feliz!
09 de agosto
Confesso. Eu menti. Escrevi um monte de mentiras aqui. Só o que aconteceu no dia 05 de agosto é verdade, o resto fui eu que inventei. A verdade é que contei pra mamãe o que tinha acontecido na escola mas ela nem se importou. Na hora do jantar meu pai viu meu caderno e me deu um tapa no rosto que está ardendo até agora, e falou que tinha vergonha de mim.
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Eu só acho que do outro jeito, o que eu inventei, o meu diário ficaria mais bonito. Ah… E a minha vida também.
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Autora: Lilian Veiga Vinhas, de São José do Rio Preto, SP, premiada com este trabalho com o 4o. lugar no prêmio de “1º Concurso de Contos Infantis sobre Diversidade Sexual”, realizado na Argentina em novembro de 2005.
Mais informações sobre o concurso: www.inversa.org
Mais informações sobre a autora: www.ideiasmutantes.com.br
SOBRE O AUTORRedação Lado AA Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa |
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