Redação Lado A | 22 de Outubro, 2018 | 12h32m |
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Obrigada a se prostituir ainda na infância, Martinha conta em vídeo do projeto #Colabora toda a sua história de vida, inclusive, durante a ditadura militar. Em tempos políticos sombrios como os atuais, nos quais diversas vozes bradam pela volta da repressão, ela relembra o quanto a comunidade LGBT foi censurada, torturada e morta.
Marta Maria de Sá nasceu em 1956 em Salvador. Apesar de seu pai não reclamar de seus trejeitos, a criança precisou lidar com o desprezo e o ódio da mãe. “Prefiro ter um filho bandido do que pederasta”, dizia a mãe de Martinha. A mulher ameaçava envenená-la caso continuasse a se comportar como uma menina. Por isso, temendo pela sua vida, saiu de casa aos sete anos de idade.
Martinha tentou trabalhar em casas de família na cidade em que morava. Na época, com o preconceito ainda mais evidente na sociedade, começou a ser explorada no trabalho. Madrugava todos os dias para servir à família para a qual trabalhava em troca apenas de um prato de comida e espaço para dormir.
Pela escola, não teve o direito de ascender, assim como várias travestis no Brasil. A instituição que reproduz os preconceitos sociais não foi branda com ela e a expulsou de volta para a rua. Os xingamentos de “veadinho”, “baitola”, não vinham só das outras crianças, mas também dos pais e professores. Martinha foi expulsa da escola por ser considerada uma má companhia para as outras crianças.
Hoje, aos 62 anos, ela lembra de seus poucos momentos felizes enquanto fazia parte de grupos LGBT na juventude, auge de sua vaidade. Gostava de se produzir com maquiagem, cuidava dos cabelos, chegou a colocar silicone. Agora, além das limitações que a idade lhe trouxe, deixou a vaidade de lado e colocou em seu lugar a luta pela sobrevivência.
No vídeo do projeto #Colabora ela conta que chegou a ter sua casa própria. Desde que foi expulsa da família, lançada à prostituição e aos perigos de uma sociedade extremamente LGBTfóbica, lutou para ter o seu espaço. Com pesar, ela conta ainda sobre a geração de sua juventude, inúmeros LGBTs que, como ela, foram reprimidos e torturados.
Depois de muito sofrimento na prostituição, guardando dinheiro embaixo do colchão em que dormia, ela viajou para a Itália. Na Europa, ainda continuou na prostituição antes de voltar ao Brasil. Após seu retorno, usou todo o dinheiro arrecadado durante anos para comprar um casarão na Baixa dos Sapateiros. No local, ela alimentou um sonho antigo que tinha como objetivo acolher outros LGBTs em situação de vulnerabilidade.
Após mais de vinte anos em sua casa que transformou em um pensionato, o sonho foi destruído. Em uma noite do ano de 2013, um casal pediu para que ela cedesse um quarto a eles. Desconfiada da postura dos dois, Martinha negou e foi ameaçada. “Tá, vou te mostrar que viado não tem vez”, disseram. Durante a madrugada, eles retornaram ao local com gasolina e puseram fim ao sonho de Matinha, transformando seu casarão em cinzas. Hoje, ela vive em uma casa alugada que mantém com um subsídio de moradia cedido pela prefeitura.
Martinha afirma que foi presa mais de 200 vezes durante a ditadura militar. O período de repressão instaurado no Brasil em 1964 perseguia, principalmente, aquilo que era considerado subversivo ou ameaça à instituição familiar. Gays, lésbica,as bissexuais, transexuais, travestis, prostitutas, umbandistas, negros e pobres eram os grupos mais afetados e perseguidos.
No vídeo, além de mostrar as marcas em seu corpo decorrentes de violência policial, ela conta detalhes da repressão. Martinha lembra que não era possível sair na rua com trajes ou trejeitos femininos. O simples fato de existir já era motivo para prisão e tortura. Com tristeza, ela menciona que todos os conhecidos e amigos de sua geração já estão mortos, pela repressão ou pelo preconceito, e que ela é uma sobrevivente.
No Centro Histórico de Salvador, havia uma delegacia especializada em punir todas as pessoas que fugiam do padrão social. Além das agressões que sofreu, dos insultos e humilhações, ela era obrigada a tirar suas roupas femininas e se comportar como um homem. Além disso, os policiais a violentavam sexualmente e ainda faziam com que ela faxinasse a delegacia. As vítimas não eram presas apenas nas ruas, muitas vezes, a polícia invadia suas casas e as levavam presas.
Nos anos de 1980, o estigma da Aids como “doença gay” estourou. Não bastasse todo o preconceito em virtude de gênero e sexualidade, agora a comunidade LGBT precisava lidar também com a doença e o preconceito que as pessoas tinham com ela. Por outro lado, acostumada a sobreviver e não viver, Martinha e outras travestis tinham suas táticas de defesa. Quando presas, para se livrar do cárcere e das torturas, elas se mutilavam com lâminas que traziam escondidas na boca. Diante do sangue jorrando, os policiais a liberavam da cadeira com medo de serem contaminados com AIDS.
Como travesti, Martinha não podia andar tranquila nas ruas sem ser ofendida pelo estigma da Aids. Nos espaços públicos, as pessoas gritavam insultos contra ela e as demais travestis, sem nenhum pudor. “Olha a Aids”, gritavam. Martinha conta ainda, que dentro dos ônibus da cidade, procurava se manter de cabeça baixa para não ser reconhecida como travesti. Se alguém desconfiasse de sua condição, seria imediatamente expulsa do coletivo sob os gritos humilhantes da transfobia.
Hoje, aos 63 anos, Martinha ainda alimenta o sonho de ter um espaço de amparo e acolhimento para pessoas LGBTs expulsas de casa e dos espaços sociais. “Eu sei o que é ser colocada pra fora de casa”, ela diz. Mesmo com a idade avançada e com o corpo debilitado, ela lembra de um passado cruel, mas tira das poucas lembranças boas a esperança de realizar seu sonho na luta LGBT.
SOBRE O AUTORRedação Lado AA Revista Lado A é a mais antiga revista impressa voltada ao público LGBT do Brasil, foi fundada em Curitiba, em 2005, pelo jornalista Allan Johan e venceu diversos prêmios. Curta nossa página no Facebook: http://www.fb.com/revistaladoa |
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