O vídeo do jovem viralizou na internet semana passada. Nele, Daniel lê trechos da Bíblia, livro sagrado dos cristãos, sobre o amor entre Jônatas e Davi. Para quem discorda dos dogmas da igreja e reflete as suas interpretações, entende que aquele amor se trata de uma relação homossexual. Filho de uma pastora, o adolescente de 20 anos gravou a leitura das passagens para abrir a discussão sobre o assunto e ir contra as pessoas que afirmam, em nome de Deus, que homossexuais são aberrações. A Lado A com exclusividade conversou com ele e traz a sua história de vida, que envolve superação e muita luta contra o preconceito. Leia:
Lado A: De onde voce é no Brasil?
Nasci no Rio de Janeiro, morava em Mesquita, na Baixada Fluminense.
Lado A: Quando você saiu do Brasil? Como?
Nossa isso tem uns dois anos, primeiro já estava fora do Brasil, em Buenos Aires, planejando meu próximo passo. Depois de muita reflexão decidi que a Europa seria boa pra mim, foi amor a primeira vista.
Lado A: Como foi parar na França?
Longuíssima história, fui expulso de casa aos 16/17 anos, por ser gay, sem documentos e com a minha matrícula escolar cancelada. O que minha família não esperava era que eu falava vários idiomas e, é claro, perseguiria os meus objetivos feito um maníaco.
Comecei com um estágio na Marinha do Brasil, depois ensinei inglês. Trabalhei em telemarketing em tempos de crise, fui recepcionista de hotel, secretário e mais um monte de coisa até que parei aqui trabalhando para uma empresa grande e focado em estudar produção musical.
Lado A: Na Marinha você chegou a se alistar?
Na Marinha foi um estágio apenas, na clínica odontológica do Primeiro Distrito Naval, no RJ. Trabalhei alguns meses mas não tiveram a decência de me pagar.
Lado A: E quais linguas você fala? Como aprendeu?
Sou autodidata em inglês e espanhol, ambos fluentes. O meu francês já está bem melhor do que quando cheguei aqui, mas ainda tenho que fazer mímica na hora das compras (risos).
Lado A: Você disse que sua mãe era pastora, de qual igreja? Como está a relação com sua família hoje?
Minha mãe faleceu em 2005, ela era da Assembléia e uma verdadeira lutadora pelos direitos das mulheres nas igrejas, porque o ambiente era e ainda é bastante machista, e minha mãe não engolia isso de jeito nenhum, apesar do termo Pastora ser totalmente antibíblico (risos). Sinto saudades dela. Hoje, minha relação com o restante da família se dá por meio de ligações e visitas ocasionais ao Brasil quando surge alguma emergência.
Lado A: Fora tua mãe, mais alguém era da igreja?
Minha família é uma bagunça. Tem os que não tiram a bíblia da mão, tem os que só pegam na bíblia aos domingos e tem os que jogam a bíblia longe.
Lado A: E como era ser gay na igreja?
Na Assembléia de Deus, conservadora, machista e ignorante dos anos 90/2000 era um verdadeiro inferno. Pessoas me diziam que eu tinha demônios, pessoas querendo expulsar meus demônios, pessoas dizendo que viam demônios em mim. Falavam mais do demônio do que de deus, era macabro. Macabro no nível: Exorcismos clandestinos na sala da minha casa.
Lado A: Você chegou a passar por isso?
Com a minha mãe não, mas com a minha avó um pastor amigo da família convenceu alguns parentes de que eu era a própria “sementinha do anticristo” na Terra. Sério, foi uma perseguição infeliz. As Assembléias de Deus em cidades pobres são como seitas.
Lado A: Já ouviu falar nas igrejas inclusivas?
Sim, mas só ouvi falar mesmo. Quando minha mãe faleceu, eu entrei em depressão mas um lado meu estava se sentindo mais seguro por não precisar mais viver dentro de uma igreja.
Lado A: E como surgiu a ideia de ler a Bíblia no teu canal?
Eu tinha feito um vídeo sobre a questão do Papa “mordendo e assoprando” causas LGBT. Coisa que não me agrada porque ficar em cima do muro e nada é a mesma coisa. Em resposta, religiosos me mandaram “ler a Bíblia”, mas de forma bastante violenta, até me chamando de aberração e etc. Então, só pelo prazer em ser debochado, peguei aqueles versículos sobre Davi e Jônatas e li. Ok, depois do concílio de Nicéa e várias revisões das escrituras, é óbvio que não ia sobrar nada sobre o suposto relacionamento dos dois, mas mesmo assim, o tom homoerótico na história é inegável.
E digo mais: se exatamente a mesma história tivesse se passado com um casal heterossexual ao invés de dois homens, fariam VÁRIOS filmes românticos em Hollywood hoje sobre isso. Mesmo que no texto não haja conotação sexual.
Lado A: Quais os temas dos seus próximos vídeos?
Eu vou dar uma pausa indefinida em assuntos religiosos. Pretendo começar um canal de variedades no YouTube, mostrando todo tipo de coisa. Eu viajo várias vezes ao ano e vivo me metendo em várias situações pelo mundo, mas nunca me interessei em filmar.
Agora que tem um monte de gente querendo saber o que eu faço, quando não estou no Facebook, seria uma oportunidade de mostrar que na maioria das vezes estou pagando altos micos em algum lugar.
Lado A: E como foi depois da morte da sua mãe? E quais os teus planos pro futuro?
Para explicar isso vamos voltar um pouquinho antes da perda. Eu era um menino de 10 anos voltando do meu último dia de aula todo orgulhoso do boletim correndo pra mostrar pra minha mãe só pra dar de cara com a ambulância saindo da porta da minha casa, a mudança de vida, morar com parentes e etc. Eu sempre fui uma criança muito quieta e sem nenhuma habilidade social devido a criação reclusa. E a sociedade não tem paciência pra pessoas sem habilidades sociais. Eu tive que aprender a lidar com outras pessoas na marra e o processo foi lento. Enfim, consegui tirar um aprendizado disso.
Sobre o futuro, eu tenho uma paixão enorme pelas artes, principalmente música, e no futuro pretendo desengavetar meu projeto musical.
Lado A: De qual estilo?
Pouca gente sabe, mas eu sou um fã doente e colecionador de músicas dos anos 70/80, porque, breguice a parte, elas possuiam um charme que se perdeu nessa bagunça superproduzida que é a indústria musical hoje. Como se artistas e bandas dos anos 80, como New Order, Yazoo, Propaganda e etc. tivessem um comprometimento com a música que não se vê hoje. O projeto tem muito a ver com isso: sintetizadores e técnicas de estúdio de ontem fazendo música de hoje.
Lado A: Você viraria pastor de uma igreja inclusiva? Como é a sua fé hoje?
Todos os pastores de Igreja Inclusiva que conheci até hoje são pessoas de boa índole, comprometidas com o ministério e de um senso de solidariedade enorme e eu os respeito muito. Mas eu, na minha humilde opinião, que se aplica somente a mim, não me vejo sendo pastor. Sabe, eu acho que um Deus onipotente, onipresente e onisciente não carece de intermediários.
Até onde eu sei, o dia em que Deus precisou mandar recado ele usou uma jumenta e não um ser humano falho. Mas ainda assim admiro os pastores de igrejas inclusivas porque são os únicos, que eu vejo, que cumprem verdadeiramente os ensinamentos de Deus. Ainda mais no que diz respeito ao amor e apoio aos fracos e oprimidos. Valores ignorados pela maioria das outras igrejas que mais parecem competições de quem é mais santo/puro/moralmente correto. Minha fé hoje é em uma força maior.
Não sei se se chama Deus, Buddha, Allah. Não confio muito em deuses documentados pelo homem. Acredito em algo maior que eu, mas não acredito que ele apoie guerras, violência, ódio, genocídios e injustiças porque essas coisas são falhas humanas e creio em um ser maior que isso.
Lado A: Você se surpreendeu do teu vídeo ter mais de 1.4 milhão de views?
Bastante! Quando vi o contador passar de um milhão, pensei que fosse mais um bug do Facebook. Vários amigos me agradecendo e várias pessoas me dando demonstrações de “amor cristão”, descrevendo em detalhes como eu queimaria no inferno, como sou uma aberração aos olhos de um ser divino que nunca se pronunciou sobre mim. Enfim, dividiu opiniões e levantou perguntas que responderei no próximo vídeo.
Confira algumas fotos do passado do Daniel Ricardo abaixo, assista seu novo vídeo e curta seu canal no Youtube aqui!
Confira o vídeo original que gerou toda a polêmica:
Vamos ler a Bíblia?
Posted by Daniel Ricardo on Wednesday, February 24, 2016